Coronavírus e idosos: “É hora de ver Faustão e socializar pelo Facebook”
Cristiane Segatto
13/03/2020 10h58
Crédito: iStock
Na última quinta-feira (12), o epidemiologista Alexandre Kalache foi ao Aeroporto de Lisboa para tentar antecipar a volta ao Brasil. Não conseguiu. Voo lotado e fila de espera.
Aos 74 anos, o gerontólogo que dirigiu o programa de envelhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) durante mais de uma década é, ele próprio, um idoso.
Kalache faz parte, portanto, do grupo mais vulnerável na atual pandemia provocada pelo novo coronavírus (covid-19).
De Lisboa, o presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil conversou com o blog sobre o medo de se infectar, a melhor forma de proteger os idosos e os limites do nosso sistema de saúde.
O epidemiologista Alexandre Kalache, em Lisboa. "Tenho medo do vírus e do pânico", diz. (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)
VivaBem: Diante dos acontecimentos na Europa, o que podemos esperar no Brasil?
Alexandre Kalache: O que pode acontecer no Brasil é uma incógnita. O que sabemos sobre o vírus é o que aconteceu em ambientes de clima frio. Ninguém sabe se o vírus vai ter um comportamento mais ou menos agressivo (ou igualmente agressivo) em um clima diferente.
VivaBem: O sr. tem medo?
Alexandre Kalache: O que me dá medo é o fato de precisarmos dominar duas epidemias: a do vírus e a do pânico. Em Portugal, os supermercados estão sendo desabastecidos, as pessoas estão comprando, acumulando porque têm medo de faltar comida. Se entrarmos em um clima desvairado de medo, o que vai acontecer aos idosos? Eles já vivem isolados. Se passarem a receber menos serviços (refeições em casa, por exemplo), ficarão sem suporte básico.
Ao lavar as mãos, cante "Parabéns a você" duas vezes
VivaBem: Como lidar com isso?
Alexandre Kalache: É claro que a gente precisa redobrar todos os cuidados para evitar transmissão de pessoa a pessoa. Uma boa medida é cantar "Parabéns a você" duas vezes, enquanto lavamos as mãos. Ensaboar bem, para cima e para baixo, o pulso e só depois enxaguar. Do contrário, não adianta. Esse é o tempo necessário. As pessoas precisam fazer o máximo para evitar a infecção dos mais vulneráveis. Os que têm diabetes, asma, algum outro problema respiratório e os mais idosos. Isso tem de ser feito de forma sensível. Sem apavorar a população. As pessoas precisam sentir que têm suporte, inclusive emocional.
VivaBem: No Brasil, os idosos envelhecem mal. O isolamento social sempre foi um problema. Agora é o momento de recomendar que eles fiquem em casa?
Alexandre Kalache: Acho que sim, infelizmente. Ir a um centro de convivência para jogar dama ou encontrar pessoas não é recomendável. Neste momento os idosos vão se proteger mais se entrarem em uma relativa quarentena, procurando se expor menos ao contágio. Agora está na hora de ver Faustão. Para não se sentir sozinho, converse com os amigos e com a família por Skype, WhatsApp etc. Sempre combati o isolamento. Digo que não adianta ter mais de 3 mil amigos no Facebook e ninguém para segurar a mão. Agora não é hora de segurar a mão. Está na hora de falar com os 3 mil amigos pelo Face.
Corpinho sarado não garante boa resposta imunológica
VivaBem: O que torna o idoso mais vulnerável?
Alexandre Kalache: Se comparar uma pessoa de 40 anos com diabetes e um indivíduo de 80 anos com a mesma doença, ele terá mais complicações porque tem uma resposta imunológica mais deficiente e vagarosa. Se ambos forem saudáveis, o idoso também terá uma resposta imunológica menos eficiente. O nome disso é envelhecimento. Conforme envelhecemos, perdemos a capacidade de responder da mesma forma que um adulto jovem. A nossa resiliência a fatores externos vai diminuindo. Vemos um cara idoso, mas sarado. Parece ótimo. Aquela senhora que tem um corpinho de 40 anos, mas isso é aparência.
VivaBem: Do ponto de vista fisiológico, eles não são mais saudáveis?
Alexandre Kalache: Eles podem ser realmente mais saudáveis. Mas na hora em que pegam um vírus, a resposta imunológica é mais baixa. Quanto mais cedo a pessoa se prepara para a velhice, melhor. Os idosos não devem deixar de manter hábitos saudáveis. Não fumar, não beber, fazer atividade física. Não está na hora de fazer caminhada em grupo, mas podem fazer exercícios em casa.
VivaBem: O que pode acontecer quando os idosos, os mais vulneráveis, começarem a procurar o sistema de saúde?
Alexandre Kalache: A maioria dos idosos (83%) depende do Sistema Único de Saúde (SUS). Na China, a mortalidade dos idosos chega a quase 20%. Entre os jovens, ela não chega a 1%. Mesmo assim, isso acontece mais entre jovens que já tinham comorbidades (asma ou outro problema respiratório ou imunossuprimidos).
Hospitais sem sabão
VivaBem: O pânico em relação ao vírus é injustificado?
Alexandre Kalache. Não há justificativa para o pânico. Temos que agir com a cabeça fria, com base em evidências científicas e com bom senso. Temos um problema potencial no Brasil, um país que já tem um sistema de saúde muito mal preparado e que sofre com falta de investimentos. Estamos falando de coisas dramáticas. Na semana do Carnaval, mais de 2 mil profissionais da atenção primária à saúde foram demitidos no município do Rio de Janeiro. Há comunidades muito pobres que, de repente, ficaram sem o staff da unidade de medicina de família.
VivaBem: O que a crise no Rio de Janeiro demonstra em relação à saúde brasileira?
Alexandre Kalache: O Rio de Janeiro é um tambor do Brasil. O que acontece lá deve ter repercussão porque a cidade é emblemática. Os enfermeiros não tinham sabão para lavar as mãos antes de passar de um paciente a outro. Isso é regra básica. Não precisa ter coronavírus para saber que sabão é indispensável. Os profissionais de saúde precisam ter um mínimo de condições para que possam se proteger e não transmitir uma infecção de um paciente a outro. Na China, os médicos estão sendo menos afetados pela infecção do que o pessoal da enfermagem. É esse pessoal que lida com secreções, troca fraldas e lida com tudo o que foi contaminado pelo paciente. Temos que proteger o nosso pessoal de saúde em um momento em que o nosso sistema de saúde já está sucateado.
VivaBem: Como a população brasileira e os próprios profissionais de saúde não vão se assustar se eles conhecem a realidade do nosso sistema de saúde?
Alexandre Kalache: Precisamos ter o bom senso de fazer o possível para nos proteger individualmente. Não está na hora de viajar, não está na hora de ir ao teatro, está na hora de evitar aglomerações. Temos também que ter o bom senso de não espalhar uma infecção grave como essa para pessoas mais suscetíveis. Quem tiver algum sintoma respiratório, resfriado ou uma pontinha de febre deve ficar em quarentena por conta própria. Provavelmente não acontecerá nada de grave para essa pessoa, mas ela pode transmitir o vírus às pessoas suscetíveis.
VivaBem: Haverá respiradores, UTI e pessoal para dar conta de mais essa demanda provocada pelo coronavírus?
Alexandre Kalache: Em um país onde já não temos os centros de tratamento intensivos necessários na rede pública para as pessoas que precisam, o coronavírus vai demonstrar como fomos desleixados com o sistema de saúde do Brasil. Como deixamos que ele chegasse ao ponto em que está? Os gastos sociais foram congelados. Isso tem um preço. Passada essa crise, com coronavírus ou sem ele, é preciso investir para reverter a situação calamitosa da nossa saúde.
"Promiscuidade habitacional"
VivaBem: É viável recomendar que os brasileiros evitem aglomerações?
Alexandre Kalache: Isso me preocupa. Nas favelas, as pessoas vivem amontoadas. É uma promiscuidade habitacional. Não só porque as pessoas vivem no mesmo cômodo, mas porque a distância entre uma casa e outra é de um metro. A favela da Rocinha tem hoje a maior incidência de tuberculose da América Latina. Temos hanseníase, doenças que são transmitidas porque as pessoas vivem umas em cima das outras. Lembro da minha avó. Ela dizia: "Em casa em que não entra o sol, entra o médico".
VivaBem: A resposta do Ministério da Saúde e de outras autoridades de saúde no Brasil frente a essa crise é adequada?
Alexandre Kalache: A resposta a essa situação aguda do coronavírus tem sido adequada. Inadequada foi a falta de atenção ao SUS. Ele foi esvaziado. Nós não o valorizamos e nem o reforçamos. As pessoas acham que dengue é besteira, doença de pobre. Não há muros suficientemente altos para proteger os ricos do Morumbi porque ao lado está a favela de Paraisópolis. Não há possibilidade de frequentar praias com águas limpas se 50% da população do Rio não tem esgoto. O que está faltando é o que faltou. Não temos estrutura sanitária (abastecimento de água e esgoto). Como pode a população do Rio receber água contaminada? A crise do coronavírus vai expor tudo isso.
Os vícios do sistema
VivaBem: Como idoso, o sr. tem receio de pegar o vírus na Europa?
Alexandre Kalache: Tenho. Estou evitando aglomerações. Cheguei há três dias, mas se fosse hoje eu não teria viajado. Vim porque tinha compromissos profissionais, mas vários foram cancelados.
VivaBem: Caso o sr. tivesse sido infectado, onde teria mais chance de conseguir um bom atendimento? Na Europa ou no Brasil?
Alexandre Kalache: Tenho amigos em Portugal, mas não tenho capital social. Se estivesse infectado, gostaria de estar perto da minha família. Até, se fosse o caso, para poder dizer a eles que foi uma longa vida e bem vivida. Do ponto de vista de atendimento de saúde, preferiria estar no Brasil porque lá sou da elite, sou um privilegiado. Tenho os conhecidos, sei navegar o sistema, tenho um seguro de saúde muito bom. Na Europa, eu seria um a mais. Se eu precisasse ser entubado, a minha chance de ser considerado um caso prioritário seria menor. O que equivale, na prática, a furar a fila. É triste dizer, mas a nossa classe social está acostumada a ter privilégios e a furar a fila. Se eu e um pobre com o mesmo grau de comprometimento de saúde fôssemos atendidos em um hospital público no Brasil, haveria um viés indicando que eu deveria receber a vaga antes dele. São os vícios do nosso sistema.
Sobre a autora
Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.
Sobre o blog
Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.