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O que você ganha com o compartilhamento de seus dados de saúde

Cristiane Segatto

18/12/2019 04h00

Crédito: iStock

O telefone fixo toca em casa e corro para atender. Ninguém do outro lado da linha. Só aquela infernal voz de máquina. Mais uma clínica popular querendo vender seu peixe. A gravação dizia algo mais ou menos assim:

"Olá, se você está cansado do SUS e dos planos de saúde, aperte o número tal e saiba mais sobre nossos serviços".

No passado, era fácil evitar chateações desse tipo. Bastava pedir a remoção dos dados do cliente nas listas telefônicas. Desde que os números caíram na boca do povo em múltiplos cadastros, a única solução definitiva contra a proliferação das máquinas falantes é cancelar a linha telefônica.

Esse é um exemplo banal de uso indesejado de dados pessoais. Há outros piores, como o dos recém-aposentados que recebem dezenas de ligações por dia de operadores de telemarketing que tentam empurrar ofertas de crédito consignado. Gente que descobre, antes mesmo dos beneficiários, o dia do primeiro pagamento e até o valor exato do benefício.

Mais do que chateação ou prejuízo financeiro, o vazamento de dados de saúde costuma ter consequências mais graves. O universo da saúde lida com dados sensíveis, capazes de provocar, por exemplo, a discriminação de pessoas.

Dados sensíveis

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) tem um rol específico sobre dados sensíveis (tais como religião, opinião política, vida sexual, genética e saúde). A LGPD deveria entrar em vigor em agosto de 2020, mas no mês passado um deputado federal propôs o adiamento do prazo para 2022. O argumento é o de que as empresas precisam de mais tempo para se adequar às normas.

No mercado da saúde, há empresas apostando no adiamento – algo que não melhora a vida dos pacientes. Se hoje dados valem mais que petróleo, me parece urgente que as pessoas possam ter a garantia de que suas informações serão preservadas e protegidas de forma adequada.

Imagine um paciente que tenha todo o seu prontuário, resultados de exames, perfil de estilo de vida, utilização de serviços e outros dados sigilosos armazenados na nuvem. Todos os médicos e hospitais pelos quais ele passar poderão ter acesso a todos os registros.

Na segunda (16), o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta disse no Instagram que espera poder comemorar no Natal de 2020 a unificação dos sistemas de informação de consultas, internações, medicamentos e vacinas do Sistema Único de Saúde (SUS) e da saúde privada.

Na atual sociedade da informação e da exposição, na qual nossas vidas viraram livros abertos, a balança dos prós e contras do compartilhamento costuma pender para o lado favorável.

O lado bom da história

Mas, afinal, o que você ganha quando aceita compartilhar suas informações de saúde? Por enquanto, ganhamos promessas de um sistema melhor. Dizem que a coleta de um grande conjunto de dados individuais e, principalmente, populacionais pode levar a diagnósticos mais rápidos e precisos.

Sem repetição de exames e adoção de condutas baseadas em evidências científicas (e não na predileção de cada profissional), o sistema (público e privado) fica mais eficiente. Se menos dinheiro é desperdiçado, mais pessoas podem ser bem atendidas. Seja presencialmente, seja por telemedicina. Seja na atenção primária à saúde, seja em uma cirurgia complexa.

Há outra razão. Quanto mais dados forem coletados, melhores serão os algoritmos de inteligência artificial capazes de apontar (em menos tempo e com alto índice de acerto) quem pode ser beneficiado por determinado tratamento.

O lado ruim da história

Andei pensando sobre os riscos do compartilhamento ao assistir a um seminário sobre transformação digital promovido na semana passada pelo Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (IESS). A advogada Camilla Jimene, sócia da Opice Blum Advogados, salientou que a lei de proteção de dados destaca três princípios fundamentais: finalidade, adequação e necessidade da coleta de informações.

Ou seja: uma empresa só pode coletar dados para uma finalidade específica, legítima e adequada ao tipo de serviço que ela for prestar ao cliente. Além disso, essa coleta tem que ser informada adequadamente ao titular dos dados. Eu, você, todos nós.

"Não pode haver excesso na coleta de dados", diz Camilla. "Será que uma academia de ginástica precisa mesmo da minha digital? Se ela vazar, estarei eternamente exposta. Não posso cortar o dedo e colocar outro no lugar, como se fosse algo substituível como um cartão de crédito".

A quantidade de dados pessoais sensíveis coletados por empresas do universo da saúde e do bem-estar é enorme. Segundo a nova lei, elas não podem compartilhar informações de pessoas com o objetivo de obter vantagem econômica, negar acesso, encarecer o valor do serviço ou excluir beneficiários (no caso dos planos de saúde).

"O desafio atual das empresas é aparar arestas de coleta excessiva de dados. Isso vai proteger as pessoas e permitir que a sociedade da informação floresça, com melhores produtos e serviços", afirma Camilla.

Para onde estamos indo

A transformação digital da saúde, o avanço da telemedicina e a existência de uma legislação clara e rigorosa para coibir abusos parecem inexoráveis. "A telemedicina, por exemplo, não deve ser vista como uma assombração. É preciso dissipar assombrações com uma boa regulação", diz José Cechin, ex-ministro da Previdência e superintendente executivo do IESS.

Segundo Leandro Fonseca, diretor presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a transformará virá. "Na história da evolução, sobrevivem os que se adaptam e não, necessariamente, os mais fortes", afirma. "Na saúde, quem se adaptar ao novo cenário vai conseguir sobreviver".

O novo cenário estabelecido pela lei exigirá mais transparência no setor de saúde. "As empresas precisam entender que as bases de dados são das pessoas – e não delas", afirma a advogada Camilla.

Nós, titulares dos dados, teremos o direito de fazer perguntas como:

— O que você faz com os meus dados? Com quem (ou com quais outras empresas) você compartilha a minha informação? E, no final das contas, o que eu ganho com isso?

 

 

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Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.