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"O SUS está vivinho da Silva. É o sonho de consumo em muitos países"

Cristiane Segatto

20/11/2019 04h00

O médico Renato Tasca, coordenador de sistemas e serviços de saúde da Organização Pan-Americana da Saúde: "É preciso acabar com a narrativa de que o SUS não funciona", afirma (Foto: Divulgação OPAS/UOL VivaBem)

O médico Renato Tasca, coordenador de sistemas e serviços de saúde da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) no Brasil, é italiano de Turim. Não perdeu o sotaque, mas incorporou expressões e gírias brasileiríssimas em uma década de andanças pelo país. Observador atento dos sucessos e desafios do Sistema Único de Saúde (SUS), Tasca acredita que ele está "vivinho da Silva" e precisa ser valorizado pelos brasileiros. "O SUS é o sonho de consumo dos cidadãos de muitos países".

VivaBem: Por que o sr. diz que o SUS está vivinho da Silva?

Renato Tasca: Existe certa opinião negativa em relação ao SUS e à administração pública em geral. Pensam que o Estado tira o dinheiro dos cidadãos, por meio de impostos, como se isso fosse uma função predatória. Acham que funcionários públicos são parasitas que aquecem cadeiras e se envolvem em corrupção. Uma das formas de destruir esse mito é dar visibilidade aos heróis silenciosos que trabalham, cotidianamente, em situações muito complicadas, com poucos recursos, em contextos difíceis e com chefes que não ajudam. E, mesmo assim, realizam coisas muito importantes no SUS.

VivaBem: É essa força de trabalho tão comprometida que mantém o SUS vivinho da Silva?

Renato Tasca: O SUS é feito de pessoas. Não são os equipamentos, os hospitais. São as pessoas: os médicos, as enfermeiras, os profissionais de saúde etc. É fundamental manter a motivação deles. O setor público não é como o setor privado, no qual os profissionais são incentivados para produzir lucro. O setor privado produz um valor monetário. As pessoas são recompensadas de acordo com a contribuição delas para a obtenção desse lucro. Se eu vendo 10 planos de saúde e o meu colega vende 20, ele vai ter que ganhar mais do que eu. O resultado é muito visível.

O desafio de medir desempenho

VivaBem: Medir desempenho no setor público é mais difícil?

Renato Tasca: É complicado definir o que é performance. O valor que se produz é um valor público – não é o lucro. E não basta apenas verificar se a doença foi curada ou controlada. Existe também uma parte intangível. É o caso da humanização, por exemplo. Há pessoas (principalmente os idosos) que procuram a unidade de saúde só para conversar. Fazem isso porque é a única forma de contato que eles têm com outras pessoas. Isso é eficiência? Possivelmente, não. Mas tem um valor público enorme. São valores difíceis de medir com indicadores clássicos.

VivaBem: O etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), diz que a atenção primária é o lugar onde se ganha ou se perde a batalha da saúde humana. O sr. concorda?

Renato Tasca: No futuro, com inteligência artificial, não sei como serão as coisas – pode ser que elas mudem para pior. Mas hoje não há como manter um sistema universal como o SUS sem fortalecer a atenção primária. Ela é o ponto mais próximo entre o Estado e o cidadão. É o momento do encontro. É ali que você vai interceptar a demanda que chega. É por meio dessa primeira porta de acesso que você organiza a rede de serviços. Se não tem isso, se a pessoa vai direto a uma unidade de pronto atendimento (UPA), aquilo ali não tem continuidade. É um atendimento episódico. Com uma atenção primária forte, o sistema tem melhor resultado, mais satisfação dos usuários, menos erros médicos, melhores encaminhamentos. Não basta ter apenas atenção primária, mas ela viabiliza o funcionamento orgânico racional de todos os serviços.

VivaBem: O Ministério da Saúde anunciou recentemente um novo formato de financiamento da atenção primária. Qual é a opinião do sr. sobre essa mudança?

Renato Tasca: A opinião da OPAS sobre isso não é relevante. É uma questão muito específica, que diz respeito a mudanças de cadastramento e de modelo de financiamento. Acho que o debate não é tanto sobre como financiar. O debate é se esse novo modelo terá realmente condição de fortalecer a APS. A princípio não opino, não formo nenhum julgamento. Essa é uma medida que tem que ser aprovada e implementada. Depois veremos os resultados. Se eles forem bons, seremos os primeiros a aplaudir. A priori, ninguém pode dizer se é bom ou ruim. Se eu der alguma opinião, será achismo. No papel, toda proposta é boa. Concordamos com os pressupostos dessa iniciativa. Ouvi muitas opiniões contra e muitas a favor. Acho que cada um tem argumentos.

O papel do setor privado

VivaBem: Existe uma onda que defende a privatização como única alternativa possível para o SUS?

Renato Tasca: Essa narrativa existe, mas algumas argumentações são míticas. Há uma construção teórica segundo a qual o SUS é ineficiente, um projeto perdedor. Outro mito é a crença de que o SUS não precisa de mais dinheiro. Bastaria torná-lo mais eficiente. Não é verdade. O SUS é claramente subfinanciado. Em todos os países que têm sistema de saúde universal, a maioria dos gastos em saúde deveria ser para o setor público. No Brasil, gastamos quase 9% do PIB em saúde em 2015. Só que menos da metade desse dinheiro foi para o SUS. Somos um país com um perfil totalmente desequilibrado de gasto em saúde. Temos um gasto privado muito importante e um gasto público insuficiente. Não chegamos a 4% do PIB quando, internacionalmente, se diz que um sistema público universal deveria chegar a 6% do PIB. Estamos muito atrás. O subfinanciamento é real, mas melhorar a gestão é fundamental.

VivaBem: Qual é o papel do setor privado na gestão do SUS?

Renato Tasca: O setor privado, quando é chamado segundo uma lógica saudável, pode contribuir. O SUS já nasceu com o privado em seu DNA, mas acho que deveríamos procurar uma relação diferente entre o público e o privado. Hoje parece que eles são dois boxeadores, um tentando acertar o outro primeiro. É preciso achar outros caminhos para que seja, realmente, uma relação ganha- ganha. Não pode ser como é hoje, em que ganha um ou ganha o outro, mas a população pode perder. O setor privado pode dar ideias e, de alguma forma, contribuir para a gestão. A gestão do SUS é participativa. Todos os agentes sociais (cidadãos, empresas etc) estão envolvidos. Mas o fato de o setor participar diretamente na execução não quer dizer que ele tenha que participar do planejamento do sistema. Até porque há conflitos de interesse aí. A principal crítica feita às agências reguladoras é que, quando os interesses privados entram nas agências, começa a dar problema. O Estado tem que cuidar dos interesses da população. O setor privado tem que pensar na sua responsabilidade social para com o país, mas fundamentalmente, ele pensa no lucro.

VivaBem: Qual é o efeito de políticas de austeridade, como a Emenda Constitucional 95, de 2016,  que congelou os investimentos em saúde por 20 anos?

Renato Tasca: O último lugar onde eu colocaria austeridade seria em um programa social – sobretudo na área da saúde. O SUS tem que ser fortalecido. Ele tem mais impacto que o Bolsa Família. Para receber o Bolsa Família, as pessoas precisam vacinar os filhos e cumprir outras exigências. Um programa potencializa os efeitos do outro. O Brasil vive uma crise econômica danada que afeta principalmente os mais pobres. Isso se reflete negativamente nos indicadores de saúde. A perspectiva não é positiva.

VivaBem: O problema do SUS é a administração direta?

Renato Tasca: Esse é outro mito. Falam do SUS como se houvesse nele uma ineficiência intrínseca. Uma coisa podre que não pode mais melhorar. Segundo esse mito, a única forma de tornar o SUS mais eficiente seria tirar a gestão da administração direta e passar para outros tipos de organização. Não estou dizendo que as Organizações Sociais de Saúde (OSS) são ruins, mas elas são apenas um instrumento. É como um carro. Quem faz a OSS funcionar são as pessoas. Há OSS maravilhosas e outras muito ruins – coisa de tubarões, de tiranossauros. Da mesma forma, existem muitas instituições gerenciadas pelo setor público que funcionam perfeitamente. Alguns serviços públicos são uma porcaria, mas o mesmo acontece no setor privado. O privado tem mais eficiência no que diz respeito à flexibilidade operacional, pode contratar recursos humanos e fazer compras mais facilmente.

Ser eficiente ou ser eficaz?

VivaBem: Ser eficiente (fazer mais com o orçamento disponível) deve ser o foco do SUS?

Renato Tasca: Quando fala em eficiência no SUS, o Banco Mundial, por exemplo, foca muito em eficiência operacional administrativa: compras, corrupção, abusos, fraudes etc. Mas eles não se debruçam sobre o tema da pertinência dos serviços. Um hospital pode ser muito eficiente em fazer ressonância magnética. Com um orçamento X, ele consegue fazer 200 exames de alta qualidade. O problema é que, talvez, a maioria dessas ressonâncias seja desnecessária. O que isso quer dizer? Esse hospital é muito eficiente em desperdiçar dinheiro. O SUS tem que se preocupar em ser eficaz. Ele tem que resolver os problemas de saúde. O objetivo principal não deve ser eficiente. Para ser eficiente, o SUS não poderia ser universal. Como vou atender regiões ribeirinhas, ir a aldeias indígenas? É tudo longe, complicado. Se pensarmos em eficiência, concluímos que não vale a pena ir até lá. Mas a Constituição diz que a saúde é para todos. Ou seja: o SUS assume ações que têm ineficiência intrínseca. Esse papo de que o SUS é ineficiente é muito superficial. É óbvio que o SUS precisa adotar medidas para ser mais eficiente, mas a eficiência não pode acabar com os princípios de universalidade, integralidade e gratuidade dos serviços.

VivaBem: De que forma o SUS ameniza a desigualdade social?

Renato Tasca: O SUS é o maior programa social do Brasil. Imagine os pobres, as pessoas sem emprego, as mais afetadas pela crise… Imagine se elas tivessem que usar o pouco dinheiro que têm para vacinar os filhos, fazer pré-natal e ir ao médico – tudo no sistema privado. Seria uma coisa terrível. Na maioria dos países e, sobretudo, naqueles do tamanho do Brasil (China e Índia), não existe nada como o SUS. Se o pobre quiser uma cura, tem que pagar. Ter um SUS é o grande sonho de consumo dos cidadãos de muitos países. Nos Estados Unidos, o número de famílias que se ferram, que perdem tudo por causa de contas de hospital é enorme. O avô teve um AVC, foi para a UTI, morreu, e a família recebe uma conta de US$ 200 mil ou mais. Tem que vender a casa, o carro, tudo o que tiver. No SUS, isso não acontece. Os brasileiros não percebem, mas o SUS tem uma relevância enorme no mundo. O Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes com um sistema universal que funciona. O SUS foi criado como um programa social que vai muito além da atenção médica. É uma pena que hoje todo o esforço na criação e desenvolvimento do sistema não seja reconhecido. Hoje as pessoas acreditam mais em fake news do que em um artigo científico publicado no The Lancet. Não podemos desistir. É preciso acabar com a narrativa de que o SUS não funciona.

 

 

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Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.