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"Meu filho não enxerga, não fala e não anda, mas tem belos sorrisos"

Cristiane Segatto

31/07/2019 04h00

A fotógrafa Mara Garcia e o filho Pedro, de 22 anos. Com paralisia cerebral, ele respira por aparelho e vive em internação domiciliar desde um ano de idade (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Sempre que o aniversário do filho Pedro se aproxima, a fotógrafa Mara Garcia se sente especialmente emotiva. Nesses momentos, ela escreve:

"Desde que você nasceu, vivemos universos paralelos. Eu me permiti entrar no seu mundo e dessa permissão me alimento. Ah, Pedrinho, seu mundo é tão diferente, quase atemporal. O meu passa tão rápido. Corro, corro e mal consigo alcançar. E, quando te olho na cama, você dorme ali, sereno. Ouço o respirador, sinto sua paz, me tranquilizo, desacelero. Pronto, neste instante, entrei no seu mundo".

No mundo de Pedro, que sofre de paralisia cerebral, a comunicação se dá por meio do sorriso. É o termômetro que permite à família deduzir se ele está confortável, tranquilo ou, quem sabe, até feliz.

No último domingo, quando o rapaz completou 22 anos, a mãe, o irmão Bruno e os amigos cercaram a cama cheia de aparelhos para cantar parabéns. Nada esperavam, mas ganharam tudo. Pedro sorriu e até gargalhou.

"Ele é um bebê gigante que gosta de carinho e de contato físico. Não sei o quanto entende, mas sorri", diz Mara.

Com o filho Bruno (de camiseta listrada), amigos e profissionais de saúde, Mara celebra o aniversário de 22 anos de Pedro. "Ele sorriu e até gargalhou", diz a mãe (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

Cor-de-rosa

Pedro nasceu com uma síndrome rara, chamada de Sturge-Weber. Ela causa calcificação cerebral e convulsões de difícil controle. Uma das características é o hemangioma (marca de nascença formada pelo excesso de vasos sanguíneos) no rosto. No caso de Pedro, as manchas se estendem por vastas áreas do corpo. "Meu filho é cor-de-rosa", diz Mara, com aquele tom de voz de quem vê poesia em tudo.

Até os seis meses de idade, o bebê enxergava e comia, mas tinha até 20 convulsões em apenas 24 horas. A cada dia de crises, começava a perder alguma coisa: visão, movimentos, chance de vir a falar no futuro.

Foi preciso submetê-lo a cirurgias radicais na tentativa de melhorar seu quadro neurológico. Mara parou de trabalhar e passou um ano com Pedro no hospital. Nesse período, ele sobreviveu à remoção do hemisfério esquerdo do cérebro, a múltiplos procedimentos e a uma grave infecção (sepse).

"Ele saiu do hospital todo equipado. Só respira por aparelho, não se vira na cama, não segura objetos e se alimenta por meio de gastrostomia", diz a mãe. "Entrei em um mundo estrangeiro e precisei aprender tudo."

Bruno com Pedro (aos 3 anos) no colo. Desde pequeno, ele ajuda a mãe a cuidar do irmão. "Bruno é doce. Não sei se Pedro o reconhece, mas sorri quando o escuta", diz Mara (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

A vida no home care

Pedro vive em internação domiciliar há 21 anos. Quando o plano de saúde o transferiu do hospital para casa, ninguém sabia direito o que era home care. Mara precisou aprender a parte técnica sobre os cilindros, as redes e todos os equipamentos necessários para manter um paciente bem cuidado durante tanto tempo.

Sabe colocar os parâmetros nos equipamentos, trocar a traqueostomia e fazer ventilação manual em caso de emergência – como no blecaute de 1999, quando as baterias se exauriram e Pedro quase morreu.

"Precisei aprender a cuidar de tudo porque, se algo der errado na ausência de um médico, o meu filho pode deixar de respirar". Pedro recebe visitas periódicas de enfermeiro, médico e nutricionista. Auxiliares de enfermagem se revezam para atendê-lo durante as 24 horas do dia.

Segundo profissionais de saúde que conhecem a história da família, o zelo de Mara na rotina de cuidados tem contribuído para que o rapaz não sofra de complicações comuns em pacientes dependentes. A última infecção grave ocorreu há 11 anos.

Mara criou uma cartilha de tradução dos sinais emitidos pelo filho quando quer se virar na cama, por exemplo. É uma forma de orientar os novos profissionais.

Como Pedro não se dá bem com dietas indrustrializadas, ela prepara diariamente o leite, os sucos e as sopinhas que o filho recebe por meio de uma sonda. Em uma das vezes em que foi tampar o líquido ainda quente, a espuma formou um coração.

Mara enxergou poesia. Era a "sopa feita com amor".

Todos os dias, Mara prepara a dieta líquida e pastosa que Pedro recebe pela sonda. Ela gostou de ver o coração formado pela espuma. "É a sopa feita com amor" (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Ninguém é supermãe

Um desafio constante para as mães de filhos totalmente dependentes é não ser abduzida pelo papel de cuidadora em tempo integral. Como não cair na armadilha de anular a própria individualidade?

"Houve momentos em que achei que fosse desmoronar. Não me sentia produtiva profissionalmente e sabia que eu não poderia ser só mãe do Pedro. Achei que eu precisava me esforçar para sair um pouco, fazer um curso, e voltar", diz.

Foi assim que Mara descobriu a fotografia e fez dela uma nova profissão. "Sempre gostei de escrever e de me encantar com a literatura e com a imagem", conta.

"Na hora da dor e da impotência é importante carregar a poesia com a gente. Ter uma visão poética das coisas, não como uma ilusão, mas como um sustento para sobreviver aos abismos".

Mara e os filhos Bruno e Pedro, em foto do ano passado: "O amor não se explica, se vive", diz ela (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Amor de irmão

A harmonia familiar construída ao redor de Pedro é resultado, também, do amor de Bruno, o irmão mais velho. Quando era criança, o economista de 30 anos beijava a barriga da mãe e agradecia pelo irmãozinho que ia chegar.

Assim que Pedro nasceu, com as manchas vermelhas pelo corpo, Bruno disse que o amava da mesma forma. Cheio de orgulho, convidou os amiguinhos para conhecê-lo. Muitas e muitas vezes se enfiou em um jaleco de adulto e entrou na UTI, tropeçando nas extremidades e ansioso para ver o irmão.

Acostumado, desde sempre, a ajudar nos cuidados de Pedro, perguntou em um dos aniversários da infância: "Mãe, será que a gente não pode bater o bolo no liquidificador para ele experimentar?". Não podia, mas a festa seguiu existindo. Ano após ano.

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Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.