Em "Unidade Básica" e na vida real, o valor da atenção primária na pandemia
A segunda temporada da série "Unidade Básica" (exibida no canal por assinatura Universal TV e disponível também na plataforma de streaming Globosat Play) foi escrita quando só os roteiristas de ficção científica poderiam se interessar em criar a história de um vírus que pararia o mundo.
Os episódios retratam a rotina das equipes de atenção primária (a porta de entrada do Sistema Único de Saúde) na era pré-covid. Não poderia ser diferente.
Um enredo com todos os elementos delineados pela epidemia do novo coronavírus seria uma grande viagem (algo fora do propósito da série), mas a realidade tem se mostrado mais delirante que qualquer ficção.
Apesar de ter sido gravada antes da dramática crise sanitária atual, a série ressalta ingredientes que demonstram o valor da atenção primária no enfrentamento da pandemia.
Criatividade, iniciativa, vínculo com os pacientes, conhecimento do território em que atuam e disposição para as boas brigas são qualidades típicas das equipes que trabalham em milhares de Unidades Básicas de Saúde (UBS) espalhadas pelo Brasil.
São habilidades e comportamentos que aparecem, em diferentes situações, ao longo da saga dos médicos Paulo (Caco Ciocler) e Laura (Ana Petta), da enfermeira Bete (Carlota Joaquina) e do agente comunitário Malaquias (Vinícius de Oliveira).
"Unidade Básica", da produtora Gullane, tem cara e gosto de vida real. Mantém os pés no chão e destaca as vulnerabilidades que a pandemia tem acentuado e jogado no ventilador todos os dias.
Os roteiros da terceira temporada vão incluir histórias dos profissionais que estão no front de combate à pandemia. Não só nos hospitais, como nas unidades básicas do país.
Onde se ganha ou se perde a batalha
No momento em que os brasileiros se preocupam com a atenção hospitalar (se haverá leitos, respiradores ou remédio milagroso para os casos graves de covid-19), assistir à "Unidade Básica" ajuda a entender que a batalha pela vida começa a ser ganha (ou perdida) em uma etapa anterior, ainda na atenção primária.
"A atenção primária está exercendo um papel fundamental nesta pandemia", diz a infectologista Helena Petta, uma das criadoras da série, ao lado da irmã e atriz Ana Petta. As equipes das UBS tentam fazer o isolamento dos casos de pessoas que são grupos de risco, mobilizam a rede de solidariedade e criam iniciativas inovadoras.
"Enquanto o Ministério da Saúde fica nesse troca-troca e não tem política nenhuma, há boas iniciativas nos lugares onde a atenção primária à saúde (APS) é forte", diz Helena. Segundo ela, médicos de família têm ajudado as pessoas a se organizar nos bairros, identificando os mais vulneráveis e tentando conseguir hotéis sociais para quem não tem como se isolar em casa.
"Para quem mora em condições muito ruins, a rua é uma extensão da casa. Não adianta só dizer "fique em casa", afirma a infectologista.
A perda de pacientes por covid-19 tem gerado grande sofrimento entre os profissionais de saúde das UBS. "Não são doentes que eles nunca viram. São pessoas que eles acompanham há 10 anos, conseguiram controlar a pressão, o diabetes, conhecem toda a família e, agora, vêem o paciente morrer de coronavírus", diz.
"Uma amiga está acompanhando, o tempo todo, 20 pacientes sintomáticos pelo WhatsApp para ver se vão piorar, se vão ter falta de ar", diz ela. "Dá aflição perceber que o Brasil poderia estar enfrentando essa pandemia de uma forma muito melhor se toda a estrutura do SUS tivesse sido potencializada nos últimos anos, em vez de ter sido sucateada", afirma.
Gente que faz acontecer
Apesar das limitações crônicas que enfrentam, profissionais de atenção primária têm adotado ações criativas para enfrentar a pandemia. Algumas delas foram apresentadas na semana passada em uma live transmitida pelo Portal da Inovação na Gestão do SUS. Destaco três dos exemplos citados:
Em Porto Alegre, uma UBS contra as fakenews
No início de março, logo que foram confirmados os primeiros casos positivos de covid-19 na capital gaúcha, os profissionais da unidade de saúde Costa e Silva, no bairro Rubem Berta, perceberam que era preciso melhorar a comunicação com a comunidade.
A forma mais simples e barata que encontraram foi criar o programa "Fica em Casa", produzido e gravado pelos profissionais de saúde e transmitido por aplicativos de celular.
As gravações são feitas, também pelo celular, entre um atendimento e outro. Toda a equipe contribui para a criação dos roteiros. O programa trata de cuidados de saúde e serviços e aborda questões como violência contra a mulher e racismo.
"A gente conseguiu entender a comunidade e ser uma voz de confiança. Há muitas informações chegando, mas é difícil distinguir o que é fakenews", contou a residente Mayara Floss, a idealizadora do projeto.
Em São Paulo, isolamento centralizado em escolas
Vizinha de mansões e prédios de luxo do Morumbi, Paraisópolis é um forte símbolo da desigualdade social. Com uma densidade demográfica de 45 mil pessoas por quilômetro quadrado, a maior do país, a comunidade criou uma estratégia de isolamento.
O Projeto Casulo (organizado por moradores, comerciantes e sociedade civil) promove o isolamento centralizado de pessoas sintomáticas com teste positivo para covid-19 e distribuição de máscaras, álcool gel e material informativo para pessoas com síndrome gripal.
As três UBS da região cobrem quase 80% da população. Os doentes são isolados em duas escolas, que foram adaptadas para ficarem parecidas com casas.
No Rio de Janeiro, a comunidade cancelou bailes funk
Na primeira semana de isolamento social no estado do Rio de Janeiro, a equipe da Clínica da Família Sérgio Vieira de Mello, no bairro Catumbi, na capital, se reuniu com associações de moradores das comunidades do entorno.
Segundo o médico de família e comunidade Rafael Cangemi, houve momentos em que os líderes do tráfico de drogas também participaram. "As comunidades possuem características e comandos com domínios diferentes", diz. Com essas reuniões, os profissionais de saúde conquistaram o apoio dos moradores. Bailes funk foram cancelados porque houve a compreensão de que potencializariam a propagação do vírus.
A cada 48 horas, todos os pacientes atendidos com síndrome gripal recebem uma ligação telefônica. A equipe também procurou os pacientes com doenças crônicas que eram atendidos na unidade e passou a monitorá-los por telefone. Com a ajuda de agentes comunitários, os profissionais de saúde conseguiram identificar mulheres vítimas de violência e criaram um canal de comunicação por aplicativo de celular.
Conte a experiência de sua UBS
Nesta semana, o Ministério da Saúde e a Organização Pan-americana da Saúde da Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS) lançaram um chamado para ouvir as experiências de resposta à pandemia. O objetivo é dar visibilidade e reconhecer iniciativas que respondam às necessidades de saúde dos brasileiros.
Os relatos devem ser enviados até 8 de junho pela plataforma virtual ancorada no Portal da Inovação na Gestão do SUS. O link para participar do APS Forte no SUS – Combate à Pandemia está aqui. Sua história real pode ser capaz de inspirar e transformar.
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