Por que 30% dos estudantes de medicina da USP não querem ser médicos?

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É, no mínimo, curioso saber que quase um terço dos alunos de medicina da melhor universidade pública do Brasil não pretende usar um jaleco e atender pacientes no consultório ou em hospitais. Isso não quer dizer que eles pensem em desistir da profissão antes mesmo de conquistar o diploma.
O que essa parcela dos estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) quer é empreender na saúde e fazer a transformação digital antes de ser engolida por ela. Quem explica esse movimento aos leitores do blog é o professor Giovanni Guido Cerri, ex-secretário estadual da saúde de São Paulo, entre 2011 e 2013.
Cerri preside o Instituto de Radiologia (InRad) e lidera o InovaHC, um movimento de incentivo à inovação na saúde, dentro e fora da universidade. O programa já abriga trinta startups, mantém parcerias com grandes empresas e com órgãos oficiais como o Ministério da Saúde. Com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o núcleo executa um projeto nacional de rastreabilidade de medicamentos.

O professor Giovanni Cerri no Instituto de Radiologia (InRad) do Hospital das Clínicas, em São Paulo (Foto: Divulgação)
VivaBem: Por que criar um centro de inovação?
Giovanni Cerri: Há alguns anos percebemos a necessidade de o Brasil desenvolver um processo de inovação na saúde. O país depende demais de importações e tem pouca criação e produção nessa área. Achamos que o Hospital das Clínicas e a universidade tinham que assumir o papel de transformar essa realidade. Resolvemos criar um quarto pé dentro da instituição. Além de assistência, ensino e pesquisa, ela também precisa ser responsável por fomentar a cultura da inovação. Assim começaram os hackathons, criamos um coworking e uma estrutura de apoio à inovação dentro do complexo do Hospital das Clínicas.
Não basta ter uma boa ideia
VivaBem: Os alunos de medicina querem inovar?
Giovanni Cerri: Estimamos que 30% dos nossos alunos não querem ser médicos. Eles querem ser empreendedores, criar startups. Dentro do HC surgem muitas ideias, mas o difícil é transformar essas ideias em produto. Achamos que era necessário criar uma estrutura que pudesse apoiar (do ponto de vista jurídico e cultural) e formar esses empreendedores. Eles precisam conhecer o processo de inovação, saber que não adianta apenas ter uma boa ideia. É preciso saber se o produto vai ter mercado.
VivaBem: Por que esses estudantes não querem exercer a medicina?
Giovanni Cerri: Com toda a transformação digital, a cabeça dos jovens é diferente. Todos percebem que boa parte do exercício da medicina será feito por meio da inteligência artificial (IA). A minha especialidade, a radiologia, será uma das mais impactadas. Em 10 anos, não vamos precisar do mesmo número de radiologistas que temos hoje. A IA vai aumentar a precisão do laudo e a produtividade. A oncologia, que é muito baseada em protocolos de administração de drogas, é outro exemplo. A IA cospe o protocolo em dois segundos. Tirando especialidades e áreas que ainda envolvem muita habilidade manual (como a radiologista intervencionista, a ultrassonografia e algumas áreas cirúrgicas), grande parte dos atendimentos será muito impactada nessa transformação.
É preciso se diferenciar
VivaBem: Será mais difícil ganhar dinheiro com a medicina?
Giovanni Cerri: Sim. Com a transformação digital e a abertura indiscriminada de escolas médicas, os jovens percebem que vão precisar se diferenciar de outra forma. Eles olham para o mundo e vêem que o empreendedorismo é uma alternativa. Os alunos da faculdade de medicina são uma elite intelectual. É um grupo muito ligado na transformação. Eles querem estar na vanguarda da profissão do amanhã, em vez de serem pegos pela transformação.
VivaBem: O quanto há de ilusão nessa história de empreendedorismo na saúde?
Giovanni Cerri: As pessoas idealizam a medicina. A realidade é bem mais difícil. Em um universo de 100 alunos, talvez dez se tornem médicos de grande sucesso e prestígio. A maior parte vai atuar em condições que eles não idealizaram. Vai trabalhar na periferia, em hospitais sem grande estrutura. Com o empreendedorismo, acho que acontece a mesma coisa. Dos 100 que optam por essa via, talvez dois consigam ser bem-sucedidos. Há outro fator que atrai os jovens para o empreendedorismo: hoje eles querem outras relações de trabalho. Não querem aquele vínculo trabalhista tradicional, horário fixo e estruturas muito verticalizadas. Eles querem ter mais liberdade.
Vem aí um centro de inteligência artificial
VivaBem: Quais resultados já foram alcançados no centro de inovação?
Giovanni Cerri: No ano passado, desembocamos na criação do Distrito InovaHC, um hub de inovação aberta dedicado às health techs. O Distrito é um coworking mais estruturado, que conta com parcerias importantes. A farmacêutica AstraZeneca, por exemplo, resolveu instalar sua diretoria de inovação dentro do Hospital das Clínicas para trabalhar com a gente. Daqui a dois meses, vamos inaugurar aqui um centro de inteligência artificial com a Siemens e com outros parceiros.
VivaBem: Quais são as dificuldades para criar essa cultura de inovação no Brasil?
Giovanni Cerri: Por uma questão regulatória, o Brasil aderiu a essa cultura tardiamente. As empresas só investem se houver uma estrutura regulatória segura. Durante muitas décadas, a universidade pública teve uma aversão ideológica a colaborar com o setor privado. Quando isso foi superado estávamos atrasados nesse processo de inovação. Muito mais que países como os Estados Unidos ou a Coréia do Sul.
VivaBem: As dificuldades jurídicas foram superadas?
Giovanni Cerri: Mesmo com uma legislação mais moderna, ainda enfrentamos dificuldades. Um exemplo: os nossos pesquisadores, que são funcionários da casa, não podem ser sócios de uma empresa. Existem muitos obstáculos que precisam ser transpostos.
VivaBem: Qual é a importância disso?
Giovanni Cerri: A ideia é criar riqueza nacional. Um produto desenvolvido no Hospital das Clínicas pode servir para qualquer hospital no país. Será customizado e desenvolvido dentro da realidade do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com o nosso perfil demográfico. Quando importamos um produto, muitas vezes é preciso adequá-lo às necessidades brasileiras, principalmente na área de digital health. Fizemos um convênio com a indústria nacional para podermos ser menos dependentes de importação.
Os jovens precisam trabalhar
VivaBem: De que forma a cultura de empreendedorismo abre novas oportunidades para os jovens?
Giovanni Cerri: O mercado da saúde está se transformando. Precisamos pensar em alternativas para que os jovens possam ter trabalho e contribuir para a saúde. A universidade tem esse compromisso social. O nosso objetivo não é ganhar dinheiro com isso. O nosso objetivo é contribuir para o desenvolvimento da cultura de inovação na saúde, uma área na qual o Brasil não conseguiu desenvolver uma indústria forte e competitiva.
VivaBem: Como criar essa cultura de inovação, sem desviar a instituição da responsabilidade de prover assistência à população?
Giovanni Cerri: Entendemos que assistência todo bom hospital pode fazer. O nosso compromisso é com uma assistência de alta complexidade. Fazer coisas diferentes. Uma inovação que foi criada aqui no Hospital das Clínicas foi o transplante intervivos. Essa técnica hoje é adotada no mundo inteiro. Na alta complexidade, assistência e inovação caminham juntas. A assistência de massa, em larga escala, pode ser feita por qualquer instituição. Enquanto que a inovação só cabe em instituições que tenham uma pesquisa avançada, um potencial intelectual que permita desenvolver a inovação. Em uma instituição como a nossa, às vezes a inovação é mais importante do que a assistência básica. Não existe um conflito.
O que a sociedade ganha com isso?
VivaBem: Como fazer com que o resultado financeiro da inovação retorne à sociedade?
Giovanni Cerri: Precisamos fazer com que as ideias sejam colocadas em prática e se transformem em produtos. E trazer a indústria para que esse produto passe para o mercado. Criar essa cadeia (da ideia à produção) é a parte mais difícil. O resultado financeiro retorna à sociedade porque a inovação gera riqueza, empregos, uma assistência melhor. Para que uma parte desse retorno financeiro retorne ao HC é preciso haver um amadurecimento da legislação para que uma instituição pública possa ser sócia de um produto. Hoje isso é muito complexo. A Universidade Stanford percorreu essa estrada, mas nos Estados Unidos é mais fácil fazer isso porque o país é mais liberal. Estamos percorrendo a nossa estrada. Ela é diferente. Não adianta seguir o mesmo caminho dos americanos porque não vai dar certo.
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