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Cristiane Segatto

Sete anos após morte do pai de Luzia devido a fitoterápico, médico é punido

Cristiane Segatto

27/11/2019 04h00

A viúva de Lucio, Jerusha, no Espaço Luz, em São Paulo, com os filhos Daniel e Luzia Mei (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

— Luzia, como você se sente neste espaço?

Faço a pergunta sem largar o celular. Os olhos fixos na câmera de vídeo. Por trás da lente, vejo Luzia Mei, 23 anos, suspender os braços no ar para não deixar dúvida sobre a resposta:

— Aqui eu me sinto leve. Leve e solta. Abro as minhas asas.

Luzia nasceu com Síndrome de Down. São dela os desenhos que ilustram este texto. É filha de Jerusha Chang e Lucio Leal, mestres da Associação Tai Chi Pai Lin, em São Paulo. Arquiteto, Lucio criou o Espaço Luz, na Vila Madalena, a partir da velha estrutura de uma oficina mecânica.

Ali os alunos exercitam práticas da tradição chinesa (Tai chi e outras) com o objetivo de preservar a saúde, ampliar movimentos e conquistar a serenidade. O ambiente é de transformação.

Nos últimos sete anos, a família de Jerusha tenta transformar a partida de Lucio, morto aos 63 anos, em janeiro de 2012, em um alerta de saúde pública.

Lucio Leal durante a prática de Tai Chi (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

A fórmula

Jerusha conta que, no final de 2011, o marido estava sobrecarregado com a administração da escola e vinha sofrendo elevações de pressão arterial. Decidiu buscar atendimento médico, mas desanimava com as consultas rápidas dos convênios e com a bula dos remédios.

Um amigo sugeriu que ele procurasse o médico Edmond Saab Junior, que tem livro publicado e um programa de rádio sobre medicina preventiva. O arquiteto decidiu experimentar.

Reprodução de foto do pai, segundo o olhar de Luzia Mei (Foto: Cristiane Segatto/ UOL VivaBem)

"Lucio disse que a conversa foi super envolvente. Antes de pedir qualquer exame, o médico receitou uma fórmula fitoterápica com 25 substâncias", diz Jerusha. "Lucio era uma pessoa desconfiada, mas resolveu tomar o remédio. Até hoje não entendemos por que ele confiou tanto naquele profissional".

Entre os componentes da fórmula, havia extrato da planta kava-kava (Piper methysticum). Vários casos de toxicidade hepática foram relatados na Europa após uso de produtos à base de plantas contendo extratos de kava-kava, segundo um documento publicado em 2016 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Reprodução de desenho feito por Luzia Mei (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

A hepatite

A fórmula foi indicada por 45 dias. Bastaram duas semanas para que Lucio começasse a passar mal. Segundo Jerusha, o marido teve queda de pressão arterial, batimentos cardíacos acelerados, insônia, perda de apetite, intestino desregulado.

Assustado, ele tentou agendar um retorno com o médico. "Por telefone mesmo, ele disse para o Lucio diminuir a dose, mas seguir tomando o remédio. E salientou que só havia coisa boa na fórmula".

Depois que os médicos de um pronto-socorro constataram uma anemia, Lucio conseguiu reagendar uma consulta com Saab Junior. "Ele ficou bravo com a gente, disse que não receitaria mais nenhum remédio e nos dispensou sem cobrar o retorno. Abandonou o caso", diz Jerusha.

Com anemia, sem apetite, trêmulo e cada vez mais magro, Lucio resolveu tentar reequilibrar a saúde apenas com as práticas de Tai chi. Não foi suficiente. Em dezembro de 2011, foi internado na UTI. Os médicos constataram uma hepatite medicamentosa e mencionaram os riscos da substância kava-kava. Uma semana depois, Lucio morreu.

Reprodução de desenho feito por Luzia Mei (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

O processo

Após a partida do criador do Espaço Luz, a família e os amigos fizeram reuniões para decidir como agir dali para frente. Acharam que era importante fazer uma denúncia no Conselho Regional de Medicina (Cremesp), mesmo que o processo demorasse.

"Queríamos dar uma explicação à nossa comunidade", diz Jerusha. Foi preciso persistência para enfrentar várias audiências, argumentações e contra argumentações. Finalmente, o médico foi julgado. Por unanimidade, os conselheiros consideraram que houve infração de três artigos do Código de Ética Médica. Entre eles, o artigo 1º: causar dano, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

O médico recorreu ao Conselho Federal de Medicina (CFM), mas a decisão do Cremesp foi mantida. A penalidade imposta foi a de censura pública. Em dezembro de 2018, ela foi publicada no Diário Oficial (reprodução abaixo).

Procurado pelo blog, o médico Edmond Saab Junior respondeu por email que não tinha interesse em se manifestar.

Reprodução da censura pública ao médico Edmond Saab Junior, publicada no Diário Oficial em dezembro (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

A história

"Quem lê o Diário Oficial?", pergunta Jerusha. Ela decidiu divulgar o que aconteceu com o marido para evitar que outras pessoas sejam prejudicadas. "Lucio já se foi, mas, no mínimo, fazemos um alerta de saúde pública. Acho que ele fez esse sacrifício, mas prestou um último serviço às pessoas", afirma.

Para a comunidade da Associação, Lucio sempre foi um exemplo de resiliência. Aos 18 anos, ele sentia dores severas quando jogava futebol. Tentou de tudo, mas seguiu em sofrimento por mais de uma década. Aos 33 anos, começou a fazer acupuntura com o filho do mestre Liu Pai Lin.

Reprodução de desenho feito por Luzia Mei (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

Três anos depois, Lucio recebeu o diagnóstico médico de espondilite anquilosante, uma doença que pode levar ao comprometimento progressivo da mobilidade da coluna e da expansão dos pulmões, além de provocar um aumento da curvatura na região dorsal. O tratamento é feito com anti-inflamatórios, analgésicos, fisioterapia e prática de exercícios posturais.

Como não se dava bem com os remédios, Lucio decidiu investir apenas nas práticas chinesas, com muita disciplina. Treinava três vezes ao dia. Chegou a meditar, diariamente, durante 60 minutos.

"Ele investiu no Tai chi como remédio e virou exemplo de autocuidado para muita gente", diz Jerusha. "Viveu assim, com muita qualidade, durante 30 anos".

Reprodução de desenho feito por Luzia Mei (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

O casamento

Lucio e Jerusha foram casados durante 15 anos. Quando soube que estava grávida, ela achou que a filha deveria se chamar Luzia, em homenagem ao pai. "E, também, porque a minha gravidez foi muito luminosa", diz ela.

Por sua vez, Lucio achou que a filha deveria ter um nome chinês. Escolheu Mei, que significa beleza. Um nome associado à flor da ameixeira, um símbolo cultural importante.

"Ele disse que a nossa filha teria um nome artístico: Luzia Mei", diz Jerusha.

Luzia Mei mostra a foto dos pais que ela tirou. "Se algum dia fizermos um livro, essa será a capa", diz Jerusha (Foto: Cristiane Segatto/ UOL VivaBem)

Lucio teve tempo de fazer uma balada de quinze anos para a filha. Como tudo na vida da família, a festa foi no Espaço Luz. Lá também está o armário envidraçado onde os desenhos de Luzia ficam expostos. Além de pintar, ela dança e faz aulas de música e teatro.

"Comecei o Tai chi na barriga da minha mãe. Meu pai partiu, mas estou aqui com ela até hoje". Em alguns horários de prática, é Luzia Mei quem fica à frente da turma –demonstrando os movimentos. Com os bracinhos no ar, linda como a flor da ameixeira.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.