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Cristiane Segatto

Saúde é um bem público ou um bem de luxo? As jabuticabas do nosso sistema

Cristiane Segatto

16/10/2019 04h00

O economista sênior do Banco Mundial, Edson Araújo, em evento em São Paulo. "É preciso acabar com o tabu de que a oferta de serviços no SUS deve ser estatal", afirma (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

O brasileiro Edson Araújo, economista sênior do Banco Mundial em Washington, afirma, sem titubear, que saúde é um bem público – e não um bem de luxo. Há duas semanas, ele participou do Global Forum – Fronteiras da Saúde, uma iniciativa do Instituto Lado a Lado pela Vida para discutir soluções para o sistema brasileiro. Em entrevista ao blog, Araújo defende uma maior integração entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e o mercado suplementar e aponta as jabuticabas que caracterizam o setor.

VivaBem: Existe um SUS que é invisível para a classe média?

Edson Araújo: A classe média usa o SUS todos os dias, mesmo sem perceber. Usa vacinação, vigilância sanitária, vigilância epidemiológica. Tudo isso está dentro do SUS e a gente não percebe. Mas também há coisas que, mesmo que a gente não use, é importante saber que elas existem. Se uma pessoa sofre um acidente grave, é melhor que ela seja levada para um hospital público de referência, onde haverá especialistas experientes treinados e mantidos pelo Estado. Em países sem sistema universal, se acontece isso com uma pessoa de classe média ou classe média alta, a família tem gastos catastróficos. Nos EUA, as famílias recebem contas de saúde de US$ 100 mil, US$ 200 mil.

VivaBem: Saúde é um bem público ou um bem de luxo?

Araújo: Quanto mais ricos os países e indivíduos, mais eles gastam com saúde. Alguns economistas dizem que isso é a prova de que saúde é um bem de luxo. Por outro lado, a saúde é um bem público. As epidemias, por exemplo, têm um impacto não apenas na economia como no bem-estar da sociedade. Basta pensar na crise do ebola na África ou no caso do sarampo no Brasil. Essas crises mostram que há um valor na saúde que é o da saúde pública. Para mim, é bom que as pessoas ao meu lado estejam saudáveis. Além disso, saúde é fundamental para o aumento da produtividade de toda a economia. Em termos de política pública, no Banco Mundial trabalhamos com o conceito de que saúde é um bem público. As pessoas têm direito à saúde assim como têm direito à segurança pública. O Brasil criou um sistema que cobre os mais pobres, diminui os gastos catastróficos das famílias com saúde, mas tem o grande desafio de melhoria da qualidade e de sustentabilidade.

Como melhorar o sistema

VivaBem: Saúde é um bem público, mas também existem os interesses do mercado privado. É possível conciliar esses dois lados e melhorar o sistema?

Araújo: Em países com sistemas de saúde paralelos existe uma relação direta entre qualidade de um e demanda por serviços do outro. Se a qualidade do setor público melhora, diminui o número de pessoas que busca o setor privado. E vice-versa. No Brasil, os dois sistemas interagem de forma perversa para o setor público. Quando as pessoas compram planos de saúde ambulatoriais com baixa cobertura, elas recorrem ao Sistema Único de Saúde (SUS) quando precisam de um atendimento mais complexo. Há uma dupla cobertura.

VivaBem: Se existe essa dupla cobertura, os sistemas deveriam funcionar de forma integrada?

Araújo: A integração dos dois sistemas é o grande desafio. É preciso definir o que o sistema público deve oferecer, com certeza, e que tipo de coberturas o setor privado pode vender a quem quiser comprar, de forma suplementar. Algo que não acontece hoje.

As jabuticabas da saúde 

VivaBem: Apesar de contarem com essa dupla cobertura, os clientes de planos de saúde podem descontar os gastos na declaração do imposto de renda. Isso é uma jabuticaba?

Araújo: O gasto público com essa renúncia fiscal é de R$ 13 bi, segundo os dados recentes da Receita Federal. Nos Estados Unidos, existe renúncia fiscal desse tipo, mas não da magnitude vista no Brasil. E estamos falando apenas da renúncia fiscal da pessoa física. Aqui há também renúncia fiscal para hospitais e fabricação de medicamentos. Coisas que chegam a 35% do gasto federal com saúde. Jabuticaba é existir renúncia fiscal para quem tem plano de saúde, mesmo existindo um sistema público universal. Isso é realmente um paradoxo.

VivaBem: Esse tipo de renúncia fiscal deveria deixar de existir?

Araújo: Sem dúvida. Essa renúncia fiscal precisa ser revogada. Se mais gente de classe média decidisse ir para o SUS, haveria pressão pela melhoria do serviço público. A renúncia fiscal aumenta a desigualdade porque beneficia os mais ricos. Além disso, ela faz o setor privado competir com o setor público por profissionais, por exemplo.

VivaBem: O sr. defende uma maior integração entre o SUS e o mercado privado. Como isso funcionaria?

Araújo: Hoje o setor público e o privado oferecem a mesma carteira de serviços. Não deveria ser assim. Deveria haver compartilhamentos. Municípios sem condições de expandir os serviços de atenção primária poderiam comprar serviços privados para atender sua população. O inverso também poderia existir. Um plano de saúde com poucos clientes em determinado município não precisaria criar serviços para atendê-los. Não haveria escala suficiente para fazer isso. Ele poderia contratar serviços existentes no setor público para atender seus clientes privados. É preciso existir um aparato legal que permitisse essa compra mútua de serviços entre os dois sistemas.

Público e privado

VivaBem: No caso do SUS, o sistema continuaria a ser público, mas a oferta de serviços poderia ser privada. É isso o que o sr. propõe?

Araújo: Sim. No Reino Unido, o sistema é público e universal, mas os médicos generalistas não são funcionários públicos. No Brasil, é preciso acabar com o tabu de que a provisão de serviços no SUS deve ser estatal. Os gargalos para prover serviços de saúde no país são muito grandes. Há quem diga que modelos como o das Organizações Sociais de Saúde (OSS), por exemplo, significam privatização e precarização do sistema. Apesar disso, as OSS trouxeram bons resultados a muitos estados e municípios que as adotaram. É um caminho, mas é preciso melhorar o aparato regulatório e de contratos. O financiamento da saúde precisa continuar a ser público. Ele garante proteção social e financeira às famílias, ao evitar gastos catastróficos. Outra coisa é a provisão estatal de serviços. Ela não vai garantir qualidade, acesso e eficiência. A provisão de serviços pode ser privada.

Um ralo sem fim

VivaBem: Diante do orçamento atual da saúde (e considerando o congelamento dos gastos públicos federais por 20 anos ocorrido em 2016), é possível oferecer a todos tudo o que o SUS se propõe a fazer?

Araújo: O Brasil gasta pouco em saúde, mas gasta mal. Falar em mais recursos do jeito que a gente gasta hoje é botar dinheiro em um ralo que não tem fim. É verdade que precisamos investir um pouco mais, mas não gastar do jeito como ocorre hoje. Antes de gastar mais temos que repensar as formas como estamos usando esses recursos. O setor hospitalar brasileiro, que é onde mais colocamos dinheiro público, é extremamente ineficiente. Cerca de 55% dos hospitais brasileiros têm até 50 leitos. Esses hospitais pequenos não têm escala e matam mais.

VivaBem: Todo município quer ter um hospital para chamar de seu. Está errado?

Araújo: Com certeza. É preciso fortalecer redes regionais e consórcios para que os pacientes sejam transferidos para municípios maiores. Outro problema é a forma como remuneramos esses hospitais. Imagine que dois hospitais atendam dois pacientes com o mesmo problema. No primeiro, o paciente se recupera e volta para casa mais cedo. No segundo, o serviço não é tão bom, o doente sofre complicações e fica internado por mais dias. Qual hospital vai receber mais dinheiro? O segundo. Além disso, há no sistema uma enorme quantidade de exames repetidos e desnecessários. Colocar mais dinheiro nesse contexto de desperdício e ineficiência não vai resolver o problema da saúde pública brasileira.

 

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.