Topo

Cristiane Segatto

É autismo ou não é? A batalha da enfermeira por um diagnóstico para o filho

Cristiane Segatto

28/08/2019 04h00

A enfermeira Carolina e o filho Arthur, em agosto de 2018, durante uma viagem. "Cada conquista dele me leva ao céu", diz (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

Até os 2 anos e 3 meses, Arthur Padrão Amorim Marinelli, o Tutu, se comunicava como a maioria das crianças de sua idade. Não articulava frases elaboradas, mas expressava desejos. Dizia "quer água", "quer tetê", "quer brincar". De uma hora para outra, parou de falar.

A família de profissionais de saúde (mãe enfermeira, pai urologista, uma tia neurocientista, outra tia psicopedagoga) não perdeu tempo. Começava ali, em 2017, a batalha vivida em milhares de lares brasileiros: a busca por um diagnóstico preciso.

O que será?

O primeiro neurologista analisou exames e achou que Arthur sofrera uma regressão normal. Como havia trabalhado em uma UTI pediátrica e acompanhado casos graves, Carolina Padrão Amorim, mãe do menino, não se convenceu.

Dois meses depois, o filho começou a apresentar movimentos estereotipados semelhantes aos verificados em casos de autismo. Arthur piscava forte, rodava e batia a mãozinha de forma repetitiva.

O médico continuava a achar que poderia ser apenas uma fase. A insistência da família gerou um incômodo. "Em uma das consultas, ele perguntou qual diagnóstico nós queríamos que ele colocasse no laudo. Disse que escreveria o que nós quiséssemos", diz Carolina. "Respondi que eu não queria um diagnóstico. Queria saber o que o menino tinha para poder tratá-lo."

Aos seis meses, o bebê Arthur tinha desenvolvimento normal (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

A segunda opinião

Arthur foi avaliado por uma equipe multiprofissional que trabalha na Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). Um novo eletroencefalograma apontou ondas cerebrais diferentes do padrão (múltiplas atividades epileptiformes).

Uma segunda neurologista decidiu tratar a atividade irregular com medicamentos para evitar que o menino tivesse uma primeira crise convulsiva. Segundo ela, a história de Arthur e seus sintomas não eram compatíveis com o autismo clássico. Ainda assim, o caso poderia ser enquadrado entre os transtornos do espectro autista (TEA), segundo os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V).

Não demorou muito para que Arthur começasse a ter crises convulsivas durante o sono e insuficiência hepática provocada pela medicação. A mudança da droga não ajudou muito. Ele passou a ter agitação psicomotora. O comportamento dele se assemelhava a uma mistura de autismo com hiperatividade.

"Imagine como a minha cabeça ficou com tudo isso. Parecia que eu estava enlouquecendo", diz Carolina. "Foi quando a neurologista fez algo espetacular. Disse que o conhecimento dela sobre epilepsia havia chegado ao limite e nos encaminhou para outra profissional".

A terceira opinião

Depois de examinar múltiplos exames e avaliar Arthur, uma eletroneurofisiologista concluiu que o garoto tem Síndrome de Landau-Kleffner (SLK). Essa é uma forma rara de epilepsia infantil que resulta em sérios transtornos de linguagem. Costuma provocar regressão autística, mas não é autismo.

O prognóstico é variável, mas algumas crianças recuperam a linguagem completamente. Não há tratamento específico, mas o uso de corticoides é considerado benéfico. A síndrome geralmente ocorre em crianças que tiveram sofrimento perinatal.

O nascimento de Arthur não foi fácil. A mãe entrou em trabalho de parto na 36ª semana de gestação. Levada ao centro cirúrgico da maternidade, ela sofreu um descolamento de placenta e um sangramento intenso. Quando os batimentos cardíacos de Arthur deixaram de ser detectados pelos equipamentos, o marido de Carolina, que é urologista, fez o parto do filho em uma cesárea de emergência.

Não houve tempo de anestesiar a mulher. "A minha adrenalina era tanta que nem senti dor", afirma ela. Arthur sofreu uma parada cardíaca. Na escala de Apgar (0 a 10), usada para avaliar as condições do bebê durante o nascimento e cinco minutos de depois, ele recebeu zero.

Para surpresa de todos, Arthur se recuperou e alcançou o padrão de desenvolvimento normal nos meses seguintes. Até que, subitamente, deixou de falar.

Arthur ao lado do berço do irmão Enrico, de 50 dias, em foto tirada neste mês (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

A quarta opinião

Um dos principais especialistas em autismo no Brasil confirmou o diagnóstico de Síndrome de Landau-Kleffner. "Ele disse que o caso de Arthur engana muito porque pode ser confundido com um autismo atípico", afirma Carolina.

Nem todos os profissionais estão preparados para fechar diagnósticos que envolvem tantas variáveis e sutilezas. O aumento dos casos de autismo ocorrido nos últimos anos em muitos países desperta um intenso debate sobre a qualidade dos diagnósticos.

Na semana passada, a revista científica JAMA Psychiatry publicou um estudo que avaliou os critérios de diagnóstico usados para classificar 23 mil pessoas como autistas entre 1966 e 2019.

Segundo os autores, a barra para diagnosticar autismo foi reduzida progressivamente nos últimos 50 anos. "Se essa tendência continuar, a diferença objetiva entre as pessoas com autismo e a população geral vai desaparecer em menos de dez anos", disse o professor Laurent Mottron, do departamento de Psiquiatria da Universidade de Montreal, ao jornal The Telegraph.

Mottron e seus colegas argumentam que o excesso de diagnósticos tem feito com que muitas pessoas que não têm autismo sejam incluídas em estudos clínicos de novas drogas e terapias.

Primeiros progressos

Para amenizar os efeitos da Síndrome de Landau-Kleffner, a família de Arthur aposta no tratamento com corticóides. Há dois meses, o menino recebe altas doses do remédio. Devido às complicações que a medicação causa (o inchaço pode levar à hipertensão, por exemplo), o tratamento deve durar apenas seis meses. Segundo Carolina, o filho parece estar melhorando.

"Hoje ele se relaciona muito melhor, interage bem mais e perdeu a aversão a determinados alimentos e texturas", diz. "Ele procura abraço e adora o Enrico, o irmãozinho de 50 dias". Arthur ainda não voltou a falar, mas já tenta emitir alguns fonemas, como pa-pai ou vo-vó.

O irmão mais velho segura Enrico, em casa. "Arthur procura abraço", diz a mãe (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Mais bom senso, por favor

"Cada conquista do Arthur me leva ao céu", diz Carolina. "Em outro dia, o preconceito ou a falta de bom senso me derrubam. Ser mãe de uma criança assim é virar refém de pessoas e não de processos. Torço todos os dias para encontrar gente razoável no meu caminho", diz.

Para a maioria das famílias, a batalha para chegar ao diagnóstico correto é só a primeira. Depois vem a luta para conseguir acesso às terapias multiprofissionais (psicóloga, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional etc), às medicações e aos exames.

"Se colocar Síndrome de Landau-Kleffner com regressão autística na papelada, o plano de saúde não reconhece e a criança fica sem acesso ao tratamento. Se colocar como transtorno do espectro autista (TEA), o convênio aceita", diz a mãe.

E lá se vai Carolina, outra vez, pedir um pouco de bom senso.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.