É autismo ou não é? A batalha da enfermeira por um diagnóstico para o filho

A enfermeira Carolina e o filho Arthur, em agosto de 2018, durante uma viagem. "Cada conquista dele me leva ao céu", diz (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)
Até os 2 anos e 3 meses, Arthur Padrão Amorim Marinelli, o Tutu, se comunicava como a maioria das crianças de sua idade. Não articulava frases elaboradas, mas expressava desejos. Dizia "quer água", "quer tetê", "quer brincar". De uma hora para outra, parou de falar.
A família de profissionais de saúde (mãe enfermeira, pai urologista, uma tia neurocientista, outra tia psicopedagoga) não perdeu tempo. Começava ali, em 2017, a batalha vivida em milhares de lares brasileiros: a busca por um diagnóstico preciso.
O que será?
O primeiro neurologista analisou exames e achou que Arthur sofrera uma regressão normal. Como havia trabalhado em uma UTI pediátrica e acompanhado casos graves, Carolina Padrão Amorim, mãe do menino, não se convenceu.
Dois meses depois, o filho começou a apresentar movimentos estereotipados semelhantes aos verificados em casos de autismo. Arthur piscava forte, rodava e batia a mãozinha de forma repetitiva.
O médico continuava a achar que poderia ser apenas uma fase. A insistência da família gerou um incômodo. "Em uma das consultas, ele perguntou qual diagnóstico nós queríamos que ele colocasse no laudo. Disse que escreveria o que nós quiséssemos", diz Carolina. "Respondi que eu não queria um diagnóstico. Queria saber o que o menino tinha para poder tratá-lo."

Aos seis meses, o bebê Arthur tinha desenvolvimento normal (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)
A segunda opinião
Arthur foi avaliado por uma equipe multiprofissional que trabalha na Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). Um novo eletroencefalograma apontou ondas cerebrais diferentes do padrão (múltiplas atividades epileptiformes).
Uma segunda neurologista decidiu tratar a atividade irregular com medicamentos para evitar que o menino tivesse uma primeira crise convulsiva. Segundo ela, a história de Arthur e seus sintomas não eram compatíveis com o autismo clássico. Ainda assim, o caso poderia ser enquadrado entre os transtornos do espectro autista (TEA), segundo os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V).
Não demorou muito para que Arthur começasse a ter crises convulsivas durante o sono e insuficiência hepática provocada pela medicação. A mudança da droga não ajudou muito. Ele passou a ter agitação psicomotora. O comportamento dele se assemelhava a uma mistura de autismo com hiperatividade.
"Imagine como a minha cabeça ficou com tudo isso. Parecia que eu estava enlouquecendo", diz Carolina. "Foi quando a neurologista fez algo espetacular. Disse que o conhecimento dela sobre epilepsia havia chegado ao limite e nos encaminhou para outra profissional".
A terceira opinião
Depois de examinar múltiplos exames e avaliar Arthur, uma eletroneurofisiologista concluiu que o garoto tem Síndrome de Landau-Kleffner (SLK). Essa é uma forma rara de epilepsia infantil que resulta em sérios transtornos de linguagem. Costuma provocar regressão autística, mas não é autismo.
O prognóstico é variável, mas algumas crianças recuperam a linguagem completamente. Não há tratamento específico, mas o uso de corticoides é considerado benéfico. A síndrome geralmente ocorre em crianças que tiveram sofrimento perinatal.
O nascimento de Arthur não foi fácil. A mãe entrou em trabalho de parto na 36ª semana de gestação. Levada ao centro cirúrgico da maternidade, ela sofreu um descolamento de placenta e um sangramento intenso. Quando os batimentos cardíacos de Arthur deixaram de ser detectados pelos equipamentos, o marido de Carolina, que é urologista, fez o parto do filho em uma cesárea de emergência.
Não houve tempo de anestesiar a mulher. "A minha adrenalina era tanta que nem senti dor", afirma ela. Arthur sofreu uma parada cardíaca. Na escala de Apgar (0 a 10), usada para avaliar as condições do bebê durante o nascimento e cinco minutos de depois, ele recebeu zero.
Para surpresa de todos, Arthur se recuperou e alcançou o padrão de desenvolvimento normal nos meses seguintes. Até que, subitamente, deixou de falar.

Arthur ao lado do berço do irmão Enrico, de 50 dias, em foto tirada neste mês (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)
A quarta opinião
Um dos principais especialistas em autismo no Brasil confirmou o diagnóstico de Síndrome de Landau-Kleffner. "Ele disse que o caso de Arthur engana muito porque pode ser confundido com um autismo atípico", afirma Carolina.
Nem todos os profissionais estão preparados para fechar diagnósticos que envolvem tantas variáveis e sutilezas. O aumento dos casos de autismo ocorrido nos últimos anos em muitos países desperta um intenso debate sobre a qualidade dos diagnósticos.
Na semana passada, a revista científica JAMA Psychiatry publicou um estudo que avaliou os critérios de diagnóstico usados para classificar 23 mil pessoas como autistas entre 1966 e 2019.
Segundo os autores, a barra para diagnosticar autismo foi reduzida progressivamente nos últimos 50 anos. "Se essa tendência continuar, a diferença objetiva entre as pessoas com autismo e a população geral vai desaparecer em menos de dez anos", disse o professor Laurent Mottron, do departamento de Psiquiatria da Universidade de Montreal, ao jornal The Telegraph.
Mottron e seus colegas argumentam que o excesso de diagnósticos tem feito com que muitas pessoas que não têm autismo sejam incluídas em estudos clínicos de novas drogas e terapias.
Primeiros progressos
Para amenizar os efeitos da Síndrome de Landau-Kleffner, a família de Arthur aposta no tratamento com corticóides. Há dois meses, o menino recebe altas doses do remédio. Devido às complicações que a medicação causa (o inchaço pode levar à hipertensão, por exemplo), o tratamento deve durar apenas seis meses. Segundo Carolina, o filho parece estar melhorando.
"Hoje ele se relaciona muito melhor, interage bem mais e perdeu a aversão a determinados alimentos e texturas", diz. "Ele procura abraço e adora o Enrico, o irmãozinho de 50 dias". Arthur ainda não voltou a falar, mas já tenta emitir alguns fonemas, como pa-pai ou vo-vó.

O irmão mais velho segura Enrico, em casa. "Arthur procura abraço", diz a mãe (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)
Mais bom senso, por favor
"Cada conquista do Arthur me leva ao céu", diz Carolina. "Em outro dia, o preconceito ou a falta de bom senso me derrubam. Ser mãe de uma criança assim é virar refém de pessoas e não de processos. Torço todos os dias para encontrar gente razoável no meu caminho", diz.
Para a maioria das famílias, a batalha para chegar ao diagnóstico correto é só a primeira. Depois vem a luta para conseguir acesso às terapias multiprofissionais (psicóloga, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional etc), às medicações e aos exames.
"Se colocar Síndrome de Landau-Kleffner com regressão autística na papelada, o plano de saúde não reconhece e a criança fica sem acesso ao tratamento. Se colocar como transtorno do espectro autista (TEA), o convênio aceita", diz a mãe.
E lá se vai Carolina, outra vez, pedir um pouco de bom senso.
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