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Cristiane Segatto

A inteligência é artificial, mas a burrice é humana na indústria da saúde

Cristiane Segatto

21/08/2019 04h00

Crédito: iStock

Duas inovações tecnológicas que vieram para ficar (a inteligência artificial e a telemedicina) têm provocado fortes reações em uma parcela dos médicos. É natural que os profissionais de saúde se preocupem em preservar o seu mercado, principalmente em um momento de grave crise econômica e de tantos exemplos de precariedade em setores impactados pelo trabalho mediado por aplicativos e plataformas digitais – a chamada uberização.

Em tese, os algoritmos de inteligência artificial (IA) são desenvolvidos com o propósito de tornar os diagnósticos mais rápidos e precisos – e não com o objetivo de substituir os humanos. Eles são uma ferramenta com potencial de melhorar o desempenho dos profissionais e liberá-los para se dedicar a tarefas nas quais eles são imprescindíveis.

Entre elas, o que há de mais nobre na medicina: a construção dos laços de confiança. Confiança não é commodity. Não é artigo de baixo valor, facilmente encontrado na praça. Relações de confiança se estabelecem com o tempo e são moldadas pelas intempéries. São os vendavais da vida que revelam quem é merecedor de credibilidade e quem, de fato, se importa com você.

Paciente nenhum troca um profissional de saúde capaz de representar tamanho valor. Se um pigmeu de lata que desliza pelos corredores fazendo carinhas fofas como um boneco da Disney for capaz de transmitir a você mais atenção e segurança que o seu médico, abrace a novidade. Tenha certeza de que não perdeu nada.

Confiança na era da inteligência artificial

Na era da inteligência artificial, é possível manter ou até mesmo aprimorar os laços de confiança entre médicos e pacientes?  É o que o médico Shantanu Nundy, consultor do Banco Mundial, e colegas se propõem a analisar em um artigo publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA).

Os autores destacam três componentes da confiança: a competência, a intenção e a transparência. Eles argumentam que a inteligência artificial pode aumentar o conhecimento e a capacidade diagnóstica dos médicos, o que levaria o paciente a confiar ainda mais no profissional. Ao mesmo tempo, a IA poderia tornar as pessoas mais aptas a se cuidar melhor. Por outro lado, a confiança nos profissionais poderia ser abalada por recursos de IA com baixa acurácia, por exemplo.

O aspecto da intenção diz respeito à confiança de que o médico age apenas em favor dos interesses do paciente. Se o avanço da automação possibilitada pela IA liberar o médico de tarefas de baixo valor – como preencher papelada – é possível que o profissional tenha mais tempo de identificar os objetivos, as barreiras e as crenças do paciente. Isso resultaria em um melhor aconselhamento e na elevação do nível de confiança entre as partes.

Nessa história toda, a transparência é um ingrediente fundamental. Segundos os autores, recursos de IA concebidos adequadamente podem ajudar os pacientes a perceber que as melhores decisões clínicas são baseadas em evidências científicas e no consenso entre os especialistas. Isso pode fazer com que a pessoa confie ainda mais no médico e no conhecimento científico.

No entanto, se os dados de saúde dos indivíduos forem rotineiramente compartilhados com terceiros para o desenvolvimento da IA, os pacientes podem ter receio de fornecer suas informações aos profissionais. Um golpe fatal nas relações de confiança e na essência da medicina.

O que quer o paciente?

Na minha visão, tudo o que o paciente quer (com ou sem IA) é ser visto como um indivíduo, como um ser único que merece atenção, respeito e consiga ter o seu problema resolvido ou amenizado.

Ninguém quer seguir financiando estruturas geradoras de desperdício e amplificadoras de doença. A precariedade das condições de trabalho dos médicos faz com que muitos se tornem máquinas preenchedoras de pedidos de exames e de receituários padrão.

Se esse nível de atendimento é a única coisa que os pacientes conseguem encontrar depois de semanas de espera por uma consulta, não me surpreende que eles confiem tanto no Dr. Google e, para confirmar as orientações encontradas, busquem uma segunda opinião nos grupos de WhatsApp.

O avanço da tecnologia não é um problema, desde que a indústria da saúde saiba conjugar seus interesses com os dos pacientes. Devemos ter em mente que as boas intenções morrem nos detalhes. E que a inteligência é artificial, mas a burrice é humana.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.