O segredo do bom parto em uma maternidade do SUS
Com as mãos sobre o ventre e uma expressão tranquila, Ana Cristina de Barros, de 22 anos, observava a movimentação da equipe de enfermagem no quarto individual em que, dali a quatro horas, daria à luz pela terceira vez.
Na última manhã de julho, Ana foi internada no Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni, no Rio Pequeno, em São Paulo, quando a bolsa que envolve o bebê no útero (preenchida pelo líquido amniótico) se rompeu.
O marido estava a caminho, mas as enfermeiras treinadas para conduzir o parto com segurança conheciam a história e as preferências dela.
"Ana é diferente da Maria e de qualquer outra pessoa. Vou fazer o que ela precisa e com respeito ao que está vivendo. Esse momento marca a vida de uma mulher", disse a enfermeira obstetra Karla Lima.
Com dilatação do colo do útero e contrações irregulares, Ana precisou receber o hormônio ocitocina para estimular o início do trabalho de parto. Quando a médica Carmen Lucia Martins Heltai se aproximou do leito, Ana sorriu.
"Gostei daqui desde o primeiro dia. Está sendo tudo muito diferente do que eu conhecia. Os meus outros partos foram ruins", afirmou.
A enfermeira Renata de Castro aproveitou a deixa:
"Vamos mudar essa experiência hoje?"
Em pouco tempo, as contrações se tornaram regulares. As dores do parto vieram. Para aliviar o desconforto e ajudar a bebê a descer pela pelve da mãe, as enfermeiras orientaram a paciente a fazer movimentos sentada sobre uma bola suíça.
Bruna nasceu, saudável, às 14 horas. "Foi um parto muito mais tranquilo", conta Ana, agradecida. De fato, a equipe conseguiu mudar a experiência da paciente.
A garantia do parto seguro
A história de Ana é um exemplo de que o bom parto não tem mistério, mas exige planejamento da rede pública para que todas as mulheres possam ser atendidas com qualidade e respeito.
No momento em que deputados e senadores criam polêmica com projetos de lei que pretendem garantir às pacientes do SUS o direito de optar pela cesárea no momento do parto, é importante considerar as evidências científicas e os argumentos dos profissionais de saúde.
Em vez de dar canetadas que nem sempre contribuem para a organização da assistência à mulher no SUS, talvez os legisladores prestassem melhor serviço à sociedade se criassem condições para a garantia do parto seguro – seja ele normal ou por cesariana.
Sem a pretensão de ter resposta fácil para uma discussão complexa, fui conhecer de perto o Programa Parto Seguro, desenvolvido pelo Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim (CEJAM), uma organização social de saúde (OSS), em nove hospitais da rede municipal de São Paulo.
O que faz a diferença
Na opinião da enfermeira Renata de Castro, o segredo do bom parto é a liberdade de movimentos. "Antigamente a mulher ficava em jejum e em repouso. Isso fazia com que o trabalho de parto fosse mais prolongado. Era traumático", diz.
Foi o que aconteceu com a paciente Aline Silva Rosal, que teve o primeiro filho no Mario Degni, antes da adoção do Programa Parto Seguro. "Fiquei o dia inteiro deitada em uma maca, recebendo medicação para induzir o parto. Passei por quatro plantões e ninguém vinha verificar quanto eu tinha de dilação. No momento em que eu mais precisava de acolhimento, fui deixada em uma posição ruim e com fome", conta.
Na semana passada, Aline descobriu que as práticas mudaram. Grávida do segundo filho, ela passou por uma consulta de orientação à gestante. Nesses momentos, a enfermeira Ana Lúcia da Silva traça um plano individual de parto. Trata-se de um registro prévio dos desejos, expectativas e preferências.
Ana Lúcia explica os diferentes tipos de parto (com fotos), riscos e benefícios para mãe e bebê, fala de anestesia, de práticas de humanização como massagem, música, iluminação suave etc e dos passos para o sucesso do aleitamento. "Estou adorando essa conversa", dizia Aline. "Mudou tudo".
Cesárea para quem precisa
O índice de cesárea no Mario Degni é de 38%. "Em alguns casos, a cesárea é necessária e capaz de salvar a mãe e o bebê. O importante é saber que esse procedimento também pode ser humanizado. Logo depois do nascimento, posso colocar o bebê com a mãe, por exemplo", diz a enfermeira obstetra Miriam Siqueira do Carmo Rabello, do Cejam.
Por ser uma cirurgia de grande porte, com perda de sangue, risco de infecção e recuperação mais lenta, a cesárea não deveria ser rotina em nenhum bom serviço de saúde. "É preciso cortar sete camadas de tecido e depois suturar tudo até chegar à pele. A cesárea é algo totalmente diferente do fisiológico. Não pode ser banalizada como a escolha da cor de um esmalte", diz Miriam.
Ao mesmo tempo, a falta de acesso à cesárea nos casos em que ela é necessária (gestações de risco, por exemplo) é uma das causas de mortalidade materna. Em 2017, foram registradas 60,6 mortes por 100 mil no estado de São Paulo, o maior índice já verificado no estado desde 1996. Segundo a Secretaria de Estado da Saúde, o aumento está relacionado à melhoria na notificação das mortes.
"Há um descompasso na conduta", acredita a médica Carmen Lucia Martins Heltai, coordenadora da ginecologia e obstetrícia do Mario Degni. "Algumas pacientes de alto risco chegam aqui só na hora do parto. O correto seria que elas nos fossem encaminhada meses antes pela Unidade Básica de Saúde (UBS)".
Carmen conta que, às vezes, manda para a cesárea pacientes saudáveis que não aceitam ter parto normal. "Se aparece uma paciente que nunca me viu, não quer ser examinada na hora do parto e tem a cesárea como uma ideia fixa, eu a encaminho para a cirurgia", diz. "Do ponto de vista ético e moral, acho que precisamos orientá-la antes de fazer uma cesárea porque falta informação sobre os riscos".
Segundo Carmen, o bom de trabalhar no Programa Parto Seguro é poder voltar às origens. "Nós, médicos, somos formados para intervir. A minha geração é a geração do fórceps. A tendência é ir para cima da mulher com aquela agressividade de quem é formado para intervir. Está errado. Partejar exige paciência".
Foi com paciência que a equipe ajudou Joane Vicente de Souza a ser mãe pela quarta vez no mesmo hospital. Na semana passada, ela e o marido Edson Silva da Costa passeavam pelos corredores com Maria Liz. Para as estatísticas, mais um parto seguro. Para a família, uma história de respeito.
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