A recuperação do bebê que perdeu 80% do intestino com dois dias de vida
O bebê Carlos Eduardo Aguiar Castro ainda não conhece a casa onde vai morar, em uma rua sem asfalto da comunidade Morrinhos 4, no Guarujá (SP). Aos 2 anos, vive em hospitais desde que nasceu. Tinha apenas dois dias de vida quando os médicos precisaram extrair 80% de seu intestino delgado. A cirurgia foi necessária porque a torção de uma alça (volvo intestinal) provocou necrose em grande parte do órgão.
Até os 7 meses, Carlinhos mamava e comia papinha salgada e de banana. A partir dessa idade, várias complicações o impediram de se alimentar pela boca. Desde então, ele recebe nutrição enteral (uma sonda é conectada diretamente ao estômago) e parenteral (feita por meio de um acesso venoso).
É comum que crianças como ele desenvolvam aversão aos alimentos. Nutridas por sonda ou cateter durante longos períodos, elas não tomam leite, não aceitam papinhas, não estendem os bracinhos para alcançar a fruta mais cheirosa.
Ainda assim, com cuidados adequados, elas podem se desenvolver dentro da faixa de peso normal, viver em família, brincar e ir para a escola. Desde que recebam a nutrição necessária em casa.
Internado há nove meses no Hospital Municipal Infantil Menino Jesus, em São Paulo, Carlinhos está pronto para deixar a instituição. A história de sua recuperação improvável é um exemplo das dificuldades envolvidas na manutenção da vida dessas crianças.
A unção dos enfermos
Quem vê Carlinhos sorridente, agitando pernas e braços enquanto agarra frutas e legumes de plástico na brinquedoteca do hospital, não é capaz de suspeitar que ele nasceu, também, com uma pequena paralisia cerebral.
"Com cinco meses, ele teve uma hemorragia no cérebro. A mãozinha ficou atrofiada e as pernas não mexiam", diz o pintor Eduardo Aguiar Castro do Nascimento, 42 anos, pai do bebê.
Levado à UTI do Hospital Estadual Guilherme Álvaro, em Santos, Carlinhos enfrentou uma grave infecção. Um dos rins quase entrou em falência.
"Os médicos não botavam fé que meu filho ia se recuperar. Chamamos o padre para dar a unção. Quando isso acontece, Deus recolhe a pessoa ou ela volta", acredita Eduardo.
Com o tempo, Carlinhos foi melhorando a ponto de voltar a respirar naturalmente. A neurologista explicou que não era possível prever como a criança se desenvolveria. Talvez ela não andasse; talvez ela não falasse.
As fisioterapeutas começaram a investir na recuperação dos movimentos. Dia após dia até que os primeiros resultados apareceram. "A neurologista me chamou para dizer que ele estava totalmente diferente. Reconhecia as pessoas, sorria e se mexia", conta a mãe Edilaine Lima Castro do Nascimento, 30 anos.
Se o pior havia passado, ainda era preciso superar o enorme desafio de manter Carlinhos nutrido. Foi quando uma médica residente trouxe uma boa notícia: havia em São Paulo um serviço público especializado em reabilitação intestinal. E assim Carlinhos chegou ao Menino Jesus, um serviço gerido pelo Instituto de Responsabilidade Social Sírio-Libanês.
A reabilitação intestinal
Casos como o de Carlinhos fazem parte daquilo que os médicos chamam de síndrome do intestino curto. Ela ocorre quando o paciente perde a capacidade de absorver nutrientes por causa de grandes ressecções cirúrgicas no intestino ou outras doenças que impedem o funcionamento adequado do órgão.
"Se há uma desnutrição severa em uma idade precoce do desenvolvimento da criança, há sequelas profundas para o resto da vida. O problema não é a falta do intestino. É a falta de nutrição", diz o cirurgião João Seda Neto, do grupo de transplantes de fígado do Hospital Sírio-Libanês.
O objetivo da reabilitação intestinal é potencializar a absorção de nutrientes em crianças que vivem com uma pequena parte do órgão. "Existem proteínas que nos ajudam a otimizar a absorção de nutrientes. Com isso, podemos fazer com que esse intestino curto trabalhe com o máximo de resposta", diz a gastroenterologista pediátrica Roberta Longo.
Um duplo desafio
Não é um trabalho simples. O primeiro desafio é técnico. A reabilitação exige que a criança fique internada durante meses, sob cuidados de uma equipe especializada. Quando ela se recupera a ponto de voltar para casa, surge o segundo desafio: quem vai pagar a nutrição enteral ou parenteral da qual ela dependerá diariamente?
"O Sistema Único de Saúde (SUS) não financia a nutrição parenteral domiciliar, mas precisa começar a fazer isso", diz Seda Neto. Muitas das crianças podem ir para a escola e ter vida social normal porque usam um cateter que fica escondido embaixo da roupa. A nutrição é feita à noite, durante 12 horas.
O cirurgião ressalta que o Brasil também deveria desenvolver outros centros de reabilitação intestinal pediátrica em diferentes regiões para evitar que as crianças precisem de transplante de intestino. "Manter um paciente com nutrição parenteral em casa custa cerca de R$ 15 mil por mês, mas o transplante é mais caro", diz ele.
Fica mais caro ainda quando as famílias desassistidas entram com ações judiciais para obrigar o SUS a custear transplantes no Exterior.
O que é melhor para o paciente?
Além dos custos, é preciso ponderar o fator mais importante: o que é melhor para o paciente, segundo as evidências científicas? "A chance de estar vivo cinco anos depois do início da reabilitação intestinal com nutrição parenteral é de 85%", diz Seda Neto. "Mundialmente, a sobrevida do transplante de intestino no mesmo período fica em torno de 50%".
Segundo ele, o transplante deve ser realizado na minoria dos casos. "Não somos contra o transplante. Fizemos em uma paciente e vamos fazer em outros que precisarem, por causa de complicações advindas do uso do cateter por longos períodos ou outros problemas. Nos melhores centros de reabilitação intestinal, cerca de 15% dos pacientes vão precisar de transplante", diz.
Uma única chance
O corpo humano tem seis grandes acessos venosos: as jugulares, as subclávias e as femorais. Por meio deles, são injetados fármacos que não podem ser administrados pela boca ou por uma veia do braço. Manter a integridade desses acessos é importante para qualquer pessoa. Para quem depende de nutrição parenteral, é questão de vida ou morte.
Exposto a tantos procedimentos em apenas dois anos, Carlinhos perdeu cinco dos acessos por causa de tromboses. Restou-lhe a jugular interna direita, por onde recebe a nutrição parenteral. Nessa situação, nem transplante ele pode fazer.
Permitir que ele viva em casa, com a combinação de nutrição enteral e parenteral, é o melhor grau de autonomia que a medicina pode oferecer. Nos primeiros seis meses, a nutrição será custeada pelo mesmo programa que financia o trabalho de reabilitação intestinal no Menino Jesus: o PROADI-SUS, uma parceria do Ministério da Saúde com hospitais filantrópicos.
O quintal
Depois disso, a nutrição de Carlinhos terá que ser assumida pelo município ou pelo Estado. Será a segunda batalha da família. Antes disso, há outra mais urgente. Carlinhos está pronto para ir para casa, mas a casa não está pronta.
Uma inundação destruiu os móveis e obrigou Eduardo a vender rifas e pedir doações para deixar a casa em condições de receber Carlinhos. As fisioterapeutas têm dito que, logo, logo, ele vai andar.
"Meu filho passou por mais de quinze procedimentos cirúrgicos, perdeu quase todas as veias e está vivo", diz Eduardo. "Amo meu menino do jeito que é, mas tenho fé de que ainda vamos jogar bola". O quintal é pequeno, mas o pai tem planos para ele. "Vou colocar o piso e uma trave de cada lado".
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