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Cristiane Segatto

Golpes contra idosos: a relação entre ser enganado facilmente e o Alzheimer

Cristiane Segatto

19/06/2019 04h02

Crédito: iStock

Criatividade não falta ao brasileiro, principalmente quando ele resolve se superar em coisas que não prestam. Um exemplo é a intensa produção de fake news despejadas nas redes sociais e de golpes financeiros aplicados por telefone. Os idosos são alvos preferenciais –o que torna os crimes não apenas covardes, mas também desumanos.

No Brasil, a bandidagem inventa lorotas para descobrir senhas bancárias, clonar cartões e fazer a limpa em aposentadorias e economias de uma vida inteira.

Nos Estados Unidos, as vítimas são enganadas por falsos agentes da Receita Federal ou atraídas pela promessa de ganhos em loterias fantasiosas. Pela frequência de casos e volume de dinheiro envolvido, a exploração de idosos já é considerada um problema de saúde pública.

Algumas arapucas são tão toscas que nos levam a pensar como as vítimas se deixaram enrolar. O que faltaria aos idosos surpreendidos pelos golpistas? Capacidade reflexiva? Raciocínio rápido? Boa audição? Discernimento? Malícia?

O que diz a ciência

Um estudo realizado com 935 voluntários com função cognitiva normal e idade média de 81,2 anos trouxe uma boa pista. Os pesquisadores do Rush Alzheimer's Disease Center, em Chicago, nos Estados Unidos, aplicaram um questionário para detectar o grupo mais suscetível a cair em golpes.

Depois de seis anos de acompanhamento, a equipe observou que os voluntários mais facilmente ludibriados pelas táticas golpistas eram 60% mais propensos a desenvolver demência.

A investigação também envolveu a realização de autópsias no cérebro de 264 participantes que morreram ao longo do projeto. Os indivíduos mais suscetíveis a cair na conversa dos golpistas apresentaram alterações típicas das primeiras manifestações patológicas do Alzheimer.

Segundo o estudo, a baixa capacidade de perceber as táticas enganosas seria um prenúncio de problemas cognitivos. O trabalho publicado no periódico Annals of Internal Medicine merece atenção, mas os autores ressaltam uma limitação: o questionário ainda não serve para predizer o risco de demência de forma individual, no consultório médico, por exemplo.

Não dói só no bolso

Os prejuízos provocados pelos criminosos vão além das perdas materiais. "Quando os idosos cometem um erro financeiro ou são envolvidos em golpes, eles não têm como trabalhar por mais 20 anos para recuperar o dinheiro perdido", diz a neuropsicóloga Patricia Boyle, em entrevista a Rita Rubin, publicada no Journal of the American Medical Association (JAMA), na semana passada.

Não dói só no bolso. "As evidências científicas demonstram que há consequências psicológicas e relacionadas à saúde", afirma Patricia. "Os idosos que se tornam vítimas tendem a desenvolver depressão e sofrer de isolamento social".

Segundo a pesquisadora, as pessoas que passam por essa situação se sentem envergonhadas por terem caído numa armadilha. Ou confusos por não entender como aquilo pode ter acontecido com elas.

Em muitos casos, os idosos não querem sequer falar sobre essa angústia ou começam a apresentar dificuldades para se cuidar. "Alguns trabalhos sugerem que a exploração financeira está associada à mortalidade precoce", diz Patricia.

Será que é Alzheimer?

É importante ressaltar que a maioria das pessoas que apresentam pequenas falhas de memória nunca irá desenvolver demência. No entanto, quem sofre de Alzheimer teve, na maioria dos casos, algum tipo de comprometimento cognitivo prévio.

Deixar de sair de casa ou de fazer atividades habituais por medo de esquecimento pode ser sinal de algum comprometimento cognitivo leve – algo bem diferente de demência. Dificuldades transitórias de memória podem estar relacionadas à depressão, à ansiedade, às noites mal dormidas, a mudanças hormonais.

Diferenciar uma coisa da outra requer uma avaliação médica criteriosa. Proteger os idosos dos golpistas à espreita exige dedicação.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.