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Cristiane Segatto

Quando Alessandra mais precisou de ajuda, a fisioterapeuta estava lá

Cristiane Segatto

12/06/2019 04h00

Ana (de rosa) e o pai Rodrigo durante uma visita à mãe Alessandra, em novembro. No serviço de reabilitação Humana Magna, ela se recuperava de uma cirurgia de quadril (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

Bastam alguns minutos de conversa para que a arquiteta Alessandra Hirayama Marsola, 37 anos, resgate cenas da pré-escola – distantes no tempo, vívidas na memória. "Os coleguinhas me chamavam de perna de pau. Criança sabe ser cruel", diz ela.

Para a menina que mancava por causa de uma luxação congênita nos quadris (perda do contato da cabeça do fêmur com o acetábulo), não era fácil ouvir provocações sem se chatear. Isso não a impediu de andar de bicicleta, brincar na rua, pular corda, andar de ônibus e metrô, virar adolescente, estudar e se formar.

Com força e determinação, Alessandra enfrentou várias cirurgias desde a infância para tentar readequar a posição dos ossos e reduzir o desalinhamento dos quadris. Elas amenizaram o problema, mas não o eliminaram completamente. Apesar das dores recorrentes, Alessandra escolheu viver como podia.

Enquanto isso, a fisioterapeuta Telma Busch exercia sua vocação na unidade de terapia intensiva (UTI) do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Durante 20 anos, ela se dedicou a pacientes graves, em coma, vítimas de acidentes de trânsito e doenças devastadoras. "Eu me apaixonei por UTI porque ali eu percebia como a fisioterapia era fundamental na evolução dos pacientes", diz Telma.

Alguns anos depois, Alessandra e Telma iriam se encontrar. Em outro endereço e contexto, a fisioterapeuta seguiria fazendo a diferença.

Mãe: ser ou não ser?

Por volta dos 35 anos, Alessandra precisava tomar uma das decisões mais difíceis de sua vida: engravidar ou não engravidar? Se ela quisesse ser mãe, será que o quadril aguentaria o peso da gestação?

Com a insegurança provocada por essa dúvida, Alessandra e o marido Rodrigo, consultaram, em São Paulo, vários dos melhores especialistas em quadril. Todos disseram que, a princípio, ela poderia sustentar a gravidez sem agravar o problema ortopédico. "Nenhum deles me deu 100% de certeza de que tudo daria certo, mas resolvi seguir em frente".

De fato, o peso da gestação não foi problema. Alessandra engordou apenas 5 quilos porque a gravidez durou 27 semanas. Ana nasceu prematura, mas se recuperou bem. Só depois é que as dores no quadril voltaram a incomodar.

A decisão

Conforme a bebê foi crescendo e pesando, Alessandra voltou a ter dificuldades para andar. "Doía muito, dos dois lados. Eu dava alguns passos e já precisava sentar", conta. "Os médicos diziam que eu era muito nova para colocar prótese no quadril, mas do jeito que eu estava não adiantava mais adiar. Resolvi encarar o procedimento para ter qualidade de vida".

E lá se foi Alessandra para mais três cirurgias. Primeiro foi preciso corrigir o joelho valgo (excessivamente voltado para dentro) em setembro de 2018. O ortopedista explicou que, se a correção não fosse feita, haveria o risco de danificar a prótese do quadril por causa da inclinação do fêmur.

Durante dois meses, Alessandra não pôde colocar o pé no chão. Em novembro, chegou o momento de fazer a cirurgia do lado direito do quadril. A operação foi bem-sucedida, mas houve uma lesão no nervo ciático. Em fevereiro, foi feita a cirurgia do lado esquerdo do quadril.

Por conta da lesão no nervo ciático, Alessandra ainda não sente o dedão do pé direito. Falta, também, recuperar a capacidade de mover o pé para cima e para baixo – uma condição necessária para dar os passos normalmente. Ninguém duvida de que ela chegará lá.

Alessandra caminha no corredor da unidade com a filha Ana, em janeiro. O esforço valeu a pena (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

"A casa da mamãe"

Com tantos pós-cirúrgicos, Alessandra se viu na posição aflitiva de precisar de ajuda para tudo. Não conseguia mais tomar banho ou se vestir sozinha. E, muito menos, cuidar da filha. Quando ficou claro para a família que era preciso buscar ajuda especializada, Alessandra decidiu se internar na Humana Magna, um serviço especializado em reabilitação, longa permanência e finitude, em São Paulo.

Disciplinada e resiliente, ela conquistou grandes avanços logo depois da primeira cirurgia. Foram três meses sem voltar para casa. "Minha filha achava que eu morava na Humana Magna. Até hoje ela diz que quer passear na casa da mamãe", conta.

Para passar o tempo, Alessandra fazia bichinhos de crochê, lia e assistia a filmes. Não era de reclamar, mas, de vez em quando, caía no choro. Nessas e em todas as horas, sabia que podia contar com uma pessoa muito especial.

Alessandra com a fisioterapeuta Telma durante uma sessão de reabilitação, em janeiro (Foto: Humana Magna/ UOL VivaBem)

A especialista em reabilitação (e em gente)

Muitos profissionais contribuíram para que a recuperação de Alessandra se transformasse em uma história de sucesso, mas uma pessoa fez toda a diferença: Telma Busch, a coordenadora dos fisioterapeutas. Depois de deixar o Einstein e de dar aulas em universidades, Telma havia aceitado o convite para trabalhar na Humana Magna.

"A Telma é humana, é pessoa. Ela sabe que não sou só um quadril e uma perna. Tenho uma cabeça e sentimentos", diz Alessandra.

Muita conversa e conforto rolaram nas duas sessões diárias de fisioterapia –uma de manhã, outra à tarde. Alessandra foi evoluindo: da cadeira de rodas para o andador. Do andador para as muletas. Das muletas para os passos livres de apoio.

Só quem viveu alguma forma de limitação de movimentos entende a importância de um bom fisioterapeuta. Essencial e pouco valorizado, esse profissional tem grande participação nas histórias de sucesso da medicina, mas raramente é reconhecido como deveria.

O preconceito contra a fisioterapia

"Ainda existe um preconceito muito grande. Acho que até da nossa parte", diz a fisioterapeuta Telma Busch. "Tenho pós-doutorado, mas não coloco "doutora" nos meus cartões. A sociedade acha que só médico pode ser doutor", diz ela.

Quanto mais complicado o caso, mais desafiada ela se sente. Para que a reabilitação de Alessandra tivesse um final feliz, Telma falava constantemente com o ortopedista que a atendia para alinhar as condutas e alcançar os objetivos.

"O fisioterapeuta não pode ficar no seu cercadinho, sem conversar com o médico. Pelo bem do paciente, é preciso que exista uma parceria de verdade", diz.

Alessandra e Telma na Humana Magna, em maio. Depois da alta, elas comemoram os progressos e a amizade (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

Os próximos passos

Depois de vencer muitos desafios, ganhar amplitude de movimentos e amenizar as dores, Alessandra voltou para casa com uma história de sucesso para contar. Mesmo com uma perna ligeiramente mais curta que a outra, ela está feliz.

"O que são milímetros para quem tinha uma diferença de centímetros?", diz Alessandra. "Se eu posso andar, está ótimo".

Telma se emociona. "A Alessandra sofreu muito desde a infância. Poderia ter se tornado uma pessoa revoltada, mas ela é doce", diz.

Não há dúvida de que Telma nasceu para ser fisioterapeuta. A descoberta da vocação ela deve ao Programa Barros de Alencar, popularíssimo nos anos 80 e exibido na TV Record. O prêmio de um show de calouros promovido pelo programa era se apresentar na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), em Penápolis, no interior paulista, onde Telma morava.

Ela venceu o concurso e foi cantar na Apae. Saiu de lá transformada e pensando em qual profissão ela deveria seguir se quisesse fazer diferença na vida daquelas crianças. Escolheu a fisioterapia e trabalhou com excepcionais por vários anos. Até descobrir a paixão pela UTI.

Barros de Alencar morreu sem saber, mas ele ajudou alguém a descobrir uma profissão abençoada.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.