Com Down, Simone recebeu um fígado novo: uma história de amor e inclusão
Nas filas de transplante, o fígado é um dos órgãos mais disputados. No estado de São Paulo, um terço dos pacientes morre antes de conseguir a doação. A escassez leva a escolhas difíceis.
Um delas envolveu a família de Simone Maria Moraes Alves, 43 anos, moradora de Bragança Paulista (SP). Com Síndrome de Down, ela sofreu uma grave hepatite autoimune e precisava de um transplante com urgência. Sem a cirurgia, ela viveria poucos dias. Horas, talvez.
Do ponto de vista legal, nada impedia que uma cidadã como ela fosse inscrita na lista de espera. Mas a lei não elimina os dilemas cotidianos da medicina. Para garantir o melhor aproveitamento dos órgãos, é preciso ponderar qual paciente está apto a fazer bom uso de uma doação. Há critérios técnicos de desempate e decisões que precisam ser tomadas em conjunto pelas equipes transplantadoras.
Quando se escolhe uma pessoa para receber um órgão, outra deixa de ser escolhida. Um paciente transplantado precisa ser capaz de seguir uma rotina de cuidados. Do contrário, o órgão recebido se deteriora e o investimento feito pela sociedade para salvar aquela vida se perde.
Simone não tem um alto grau de autonomia. Depende da ajuda dos familiares em grande parte das atividades diárias. Não fala, mas é capaz de entender quando alguém se refere a ela. Tenta interagir como pode. Balbucia algumas palavras. Gosta de gente e parece feliz.
Seria a melhor candidata?
A escolha
"Muitos grupos ainda se recusam a fazer transplante em pacientes como Simone", diz o hepatologista Tércio Genzini. Além das dúvidas relacionadas à capacidade de autocuidado, o caso dela trazia outros desafios clínicos. Simone tem uma tendência a sofrer de congestão pulmonar, uma característica que pode ocorrer em outras pessoas que nascem com Down.
Com o pulmão encharcado, ela poderia sofrer uma grave infecção no pós-operatório. Tudo isso foi explicado à professora Claudete, mãe da paciente, e às irmãs Viviane e Fernanda – o trio de guardiãs convictas que, por Simone, faria qualquer coisa.
O agravamento da hepatite fez com que Simone fosse inscrita na lista. Em agosto do ano passado, ela foi submetida ao transplante no Hospital Leforte, em São Paulo, pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Segundo Genzini, Simone chegou em estado gravíssimo. "O risco de morte em pacientes na mesma situação é de 83% em três meses", afirma.
Durante a cirurgia, enquanto a equipe tentava concluir o transplante o mais rápido possível e estancar uma hemorragia, Claudete rezava. Passou boa parte daquela noite ajoelhada na sala de espera.
Contrariando a maioria das expectativas, Simone sobreviveu.
A recuperação
Foram 50 dias de internação, a maior parte deles na unidade de terapia intensiva (UTI). Ninguém sabia como Simone se comportaria durante as semanas de recuperação. Gritaria o tempo todo? Tentaria arrancar o soro e a sonda? Aceitaria fazer fisioterapia?
Mais uma vez, Simone surpreendeu. Segundo Genzini, a colaboração da paciente e a dedicação integral da família superaram qualquer previsão.
"Essa história incomum abre uma porta para que outros pacientes com Síndrome de Down, que estejam na mesma situação e contem com uma família que dê todo o suporte, tenham a chance de receber um transplante de fígado", diz Genzini. "Tecnicamente e clinicamente, é possível".
Nove meses depois da cirurgia, os exames indicam que o novo órgão funciona bem. "Não há mais nenhum questionamento com relação ao sucesso do transplante. Agora precisamos ajustar a dose das drogas imunossupressoras porque elas também são tóxicas", afirma o médico. A equipe está preparando um artigo científico sobre o caso.
A família
O fígado recebido por Simone foi doado pela família de um homem de 44 anos, vítima de aneurisma. Ao ouvir a causa do óbito, é Claudete quem se surpreende. O pai de Simone, piloto de avião, sofreu um aneurisma, aos 43 anos, antes de conseguir pousar um avião de carga em Porto Velho. Foi preciso que o co-piloto assumisse o controle. Morreu quatro meses depois do aniversário de 15 anos da filha.
Claudete não teve coragem de contar. Sempre que um carro parava na porta de casa, Simone tentava dizer: "Papai chegou". Após um ano de tantas esperas, ela mesma se convenceu: "Papai morreu", disse à mãe. Não havia mais o que esconder. "Ela teve a sensibilidade de perceber que ele não voltaria mais", diz Claudete.
Desde a infância, Simone se firmou como uma força agregadora. Um polo de atração e união da família. "Gosta do Natal, da Páscoa, dos aniversários. Quer ver todo mundo junto, até os tios e primos que vivem em outras cidades. Ninguém tem coragem de dizer "não".
"É um privilégio ter uma pessoa como a Simone por perto", diz a irmã Viviane, professora com doutorado em Física. "A gente aprende a viver sem preconceito e a entender as pessoas de outro jeito. Minha irmã se comunica de outra forma e é feliz com pouco".
A inclusão
Simone nasceu prematura, com menos de dois quilos. O diagnóstico de Síndrome de Down, feito por um neurologista ainda na maternidade, foi um choque. Ainda assim, Claudete decidiu que não esconderia a filha. Tratou logo de apresentá-la às visitas e falar sobre a Síndrome. Aos seis meses, Simone começou a participar de um programa de estimulação precoce na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), em Bragança Paulista.
Cresceu em ambientes escolares, por conta da profissão da mãe. Frequentou a 4ª série durante 15 anos, em um tempo em que não havia compromisso com a inclusão de alunos como ela. "De certa forma, acho que a Simone ajudou a criar essa possibilidade, que hoje existe naquela escola. Ter uma pessoa como ela por perto é uma alegria", diz Claudete.
Simone não é alfabetizada, mas reconhece as letras. Soletra o próprio nome, com rapidez. Conta até dez. Daí em diante, é mais difícil. Sabe que tem um fígado novo e que precisa cuidar bem dele. Aproxima o braço direito da barriga e balança o corpo, como se estivesse dançando. Tenta contar que foi à praia há algumas semanas e se divertiu muito. E consegue.
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