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Cristiane Segatto

A balada de Duda: como uma mãe melhorou os dias da filha no hospital

Cristiane Segatto

03/04/2019 04h00

Duda no início do tratamento, em 2014, com os pais Paula e Eduardo (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

Aos 3 anos, Eduarda Fonseca adorava a praia e os pássaros. Corria atrás dos quero-queros, vivia a doce liberdade da primeira infância. Até que, em uma sexta-feira, começou a mancar. No sábado, os pais notaram que seu equilíbrio não era o mesmo. No domingo, estranhamente, um dos olhinhos tornou-se estrábico.

A família não perdeu tempo. Na segunda-feira, o pediatra examinou a menina. Na terça, ela foi internada para fazer uma ressonância magnética. Na quarta, o laudo ficou pronto. Na quinta, Eduarda estava no centro cirúrgico do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

Nove horas de cirurgia para extrair um tumor cerebral. Localizado em uma região sensível, a massa não pôde ser totalmente retirada. Os médicos ponderaram que uma cirurgia radical poderia produzir graves sequelas. Traçaram um plano de tratamento.

A administradora de empresas Paula Ferreira e o engenheiro Eduardo Fonseca, pais daquela única filha, sabiam que ele seria longo.

Um mundo novo

Paula, hoje com 47 anos, decidiu que viveria aquela experiência em tempo integral. Licenciou-se do trabalho e, praticamente, passou a morar no hospital. Seria menos Paula e mais mãe da Duda.

Acostumada a planilhas, estatísticas, resultados previsíveis, caiu sem paraquedas no território daquela exasperante ciência inexata chamada medicina.

Para aplacar a angústia das incertezas, começou a pesquisar, cruzar informações e observar atentamente as práticas dos profissionais – não com o objetivo de confrontá-los, mas para ter a certeza de que a filha receberia a melhor atenção possível.

Em pouco tempo, ficou famosa no hospital. "Para alguns, eu era a mãe difícil, a que pergunta, se mete, dá opinião", diz. No entanto, ela sentia que a maioria apoiava a postura firme e participativa que adotou.

Uma leoa vigilante

Em quatro anos de tratamento, Duda passou por duas cirurgias de alta complexidade e outras oito de menor proporção (para colocar e retirar cateteres e sondas, por exemplo). E ainda suportou dezenas de sessões de radioterapia e quimioterapia – incluindo as chamadas intratecais (quando a medicação é aplicada no fluido em torno da medula espinhal).

Os exames de ressonância magnética também não eram simples. Duda precisava ser anestesiada em sessões (foram 15) que levavam cerca de três horas.  Diante da longa exposição a tantos procedimentos, o risco de que algo desse errado era constante.

Os eventos adversos (falhas, muitas vezes fatais, ocorridas durante os cuidados de saúde) são a terceira causa de morte nos Estados Unidos – atrás apenas das doenças cardiovasculares e do câncer. No Brasil, as notificações de eventos adversos ainda são precárias, mas os especialistas estimam que a dimensão do problema seja semelhante.

Nos últimos anos, dezenas de instituições foram criadas para conscientizar o público e os profissionais sobre a importância das medidas capazes de aumentar a segurança dos procedimentos e melhorar a experiência dos pacientes em hospitais, clínicas e outros ambientes de cuidados de saúde. É o caso da Fundação para Segurança do Paciente, do Instituto Brasileiro para a Segurança do Paciente e de tantas outras iniciativas.

"O familiar é uma das últimas linhas de defesa em relação a uma série de eventos adversos que podem acontecer em um hospital", diz o anestesiologista Enis Donizetti Silva. Além de ter participado das cirurgias de Duda no Sírio-Libanês, Silva é vice-presidente da Fundação para Segurança do Paciente.

Duda com a equipe da ressonância magnética e a mãe Paula (agachada à direita). Ninguém resistia à doçura da menina que distribuía beijos e abraços

A fiscal do álcool gel

Paula não se intimidava. Pedia que os profissionais lavassem as mãos antes de tocar na filha, oferecia álcool gel quando ficava evidente que a torneira não havia sido aberta, cuidava para que os medicamentos fossem dados na hora certa, observava se a bomba de infusão era adequada à dosagem e ao peso da menina, trabalhava para reduzir os riscos de infecção.

"Nos primeiros dias de hospital, o familiar está em choque. Depois, acha que não é capaz de contribuir com os profissionais. Até cair na real e perceber que, não só podemos, como devemos participar de tudo", diz Paula.

O Sírio-Libanês, assim como outros hospitais, dispõe de um escritório de Experiência do Paciente. A instituição soube ouvir e acatar algumas das sugestões feitas pela família.

"A interação da Paula com os profissionais trouxe melhorias ao hospital, como novos modelos de prescrição de medicamentos e realização de biópsias e ressonâncias magnéticas", diz o anestesiologista Silva.

A planilha de Excel

Houve um período em que Duda tomava 12 medicações por dia – algumas de oito em oito horas, outras de seis em seis e assim por diante. Ao perceber que era difícil controlar se os horários das medicações estavam sendo respeitados rigorosamente, Paula decidiu desenhar uma linha do tempo e colar na parede do quarto. Funcionou! Quando notava atraso de alguns minutos, ela reclamava no postinho da enfermagem: "Ei, pessoal, cadê a medicação da Duda?"

Quando a menina passou a usar uma droga experimental sobre a qual pouco se sabia, Paula resolveu fazer uma estatística por conta própria. Em uma planilha Excel, registrava os efeitos e interações observadas na filha. A cada vez que Duda recebia o remédio, Paula registrava o que acontecia com os indicadores de hemácias, leucócitos, neutrófilos etc.

"Isso me ajudava a planejar a nossa vida. Saber o dia em que ela poderia sair à rua, receber visita da avó, o dia em que ficaria sem comer. Como nada disso existia, eu criei", diz Paula. Com o tempo, os dados da planilha passaram a ser consultados pela equipe. Um registro precioso sobre os efeitos de uma droga sem história.

Duda e a mãe Paula, em 2014, no Parque Burle Marx. Hora de aproveitar o intervalo entre as sessões de quimioterapia (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

Fica, Peppa Pig!

A longa convivência de Duda e Paula com a equipe do hospital não produziu alterações relacionadas apenas à segurança. Mudanças aconteceram também no quesito "experiência do paciente". Às vezes, pequenos gestos ou concessões podem trazer conforto ao doente e seus familiares, sem comprometer os resultados do tratamento. Nem sempre é fácil ajustar a medida do que pode e do que não pode em um ambiente cheio de normas como é um hospital.

Foi o que aconteceu no dia em que Duda resolveu colar uma figurinha da Peppa Pig no berço, na área destinada à recuperação dos pacientes após as sessões de radioterapia. No dia seguinte, cadê a figurinha? Ao notar o sumiço, Paula ouviu de uma enfermeira que o adesivo poderia ser foco de contaminação. Lá se foi a alegria de Duda.

Atitude diferente teve outra enfermeira. Ela decidiu consultar a Comissão de Controle de Infecção Hospitalar e voltou com a grande notícia: "Se a Peppa deixa a Duda mais tranquila e feliz, ela pode colar quantas figurinhas quiser".

A Balada de Duda

Em um hospital, as coisas não têm que ser boas para a equipe ou para os familiares. Elas devem ser boas para o paciente. A cada nova sessão de radioterapia, Duda precisava ser anestesiada e presa à cama. Era fundamental que ficasse imóvel para que a radiação atingisse o alvo exato. Nas manhãs geladas de inverno, a menina chegava ao hospital bem cedo, ainda de pijama.

Era obrigada a ficar sozinha no ambiente frio e estéril. Ao notar que a sala tinha uma iluminação rebaixada e um aparelho de som, Paula perguntou se poderia colocar música.

Assim nasceu a Balada da Duda, uma verdadeira festa disco. Técnicos, enfermeiros, mãe e filha entravam na sala, apagavam as luzes e faziam uma farra com direito a peruca, óculos e confete. Duda ria seu riso mais gostoso enquanto dançava e ouvia Stay in the light.

Depois, sossegada, recebia o anestésico e o raiozinho protetor.

A despedida

Hoje, quando relembram a história mais importante de suas vidas, os pais de Duda são gratos aos profissionais que foram capazes de entender por que eles tinham a necessidade de participar ativamente do tratamento da filha. "A consciência de que fizemos parte daquilo tudo é o que nos permite acordar de manhã e seguir respirando."

Depois de quatro anos de tratamento, as possibilidades oferecidas pela medicina se esgotaram. Paula e Eduardo buscaram recursos internos para aceitar."Aprendi com minha pequena gigante o significado de força, generosidade e resiliência", diz ela. "Deus me deu o privilégio de ter sido sua mãe".

Duda morreu no dia em que completou 7 anos.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.