Cristiane Segatto http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Wed, 27 May 2020 18:52:20 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Quanto vale um profissional de saúde, se ela é essencial? http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/05/27/quanto-vale-um-profissional-de-saude-se-ela-e-essencial/ http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/05/27/quanto-vale-um-profissional-de-saude-se-ela-e-essencial/#respond Wed, 27 May 2020 07:00:01 +0000 http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/?p=626

Crédito: iStock

Um dos efeitos da pandemia de covid-19 é nos obrigar a refletir sobre o que é, de fato, importante. O governo decreta quarentena e os privilegiados que podem trabalhar em casa cuidam para que o essencial não falte.

É preciso ter água, comida, produtos de limpeza e de higiene, delivery para imprevistos ou para a pizza de sexta à noite, professores online para manter o corpo e a mente desafiados, transporte para chegar ao hospital em caso de necessidade etc.

Quem pode ficar em casa nessas condições (e, ainda assim, reclama) deveria fazer um esforço para ser razoável. Nada se compara ao peso que os profissionais de saúde carregam dentro e fora dos hospitais. Gente exausta, em risco permanente de se infectar e de infectar seus familiares. E que, ainda assim, segue na batalha.

Trabalho vital e inseguro

O que há em comum entre a maioria dos trabalhadores da saúde e os cidadãos que garantem as entregas e o funcionamento do que é essencial? Ganham mal, são desvalorizados e expostos aos riscos e à sujeira dos quais queremos distância.

“A regra geral parece ser: quanto mais vital é o seu trabalho, mais baixa é a remuneração que você recebe, mais inseguro é o seu emprego e mais riscos você enfrenta na luta contra o coronavírus”, escreve o historiador holandês Rutger Bregman, em artigo publicado na revista Time, no qual ele defende a ideia de que o momento para mudar o mundo é agora.

Lembrei desse texto ao ler os resultados de uma pesquisa que avaliou o impacto da covid-19 sobre os profissionais de saúde pública do Brasil, realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia, da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), e divulgada pela Agência Bori.

Sem apoio e equipamentos

Mais de 1,4 mil profissionais de saúde, de todos os níveis de atenção e regiões do país, responderam às questões na segunda quinzena de abril.

Os pesquisadores não tratam de remuneração, mas os resultados indicam o desamparo e a falta de valorização dos profissionais de saúde. Alguns destaques:

64% dos participantes não se sentem preparados para lidar com a crise

77% dos médicos, 84% dos profissionais de enfermagem e 91% dos agentes comunitários de saúde e de combate às endemias têm medo de contrair o vírus

55% dos profissionais de saúde têm conhecido ou familiar que se infectou

37% dos médicos, 47% dos profissionais de enfermagem e 80% dos agentes comunitários de saúde e de combate às endemias disseram não ter recebido equipamentos de proteção individual (EPIs)

54% dos médicos, 58% dos profissionais de enfermagem e 89% dos agentes comunitários de saúde e de combate às endemias disseram não ter recebido treinamento para lidar com a pandemia.

Quem vai cuidar de quem cuida?

“A pesquisa mostra que os profissionais de quem mais dependemos para enfrentar a pandemia estão em situação de extrema vulnerabilidade”, afirma a professora Gabriela Lotta, da FGV-SP. “O Brasil já lidera o ranking de mortes entre profissionais de saúde em decorrência da covid-19. Quem vai cuidar de quem precisa cuidar de nós?”.

Segundo Gabriela, é muito grave a maneira como os profissionais estão sendo expostos ao novo coronavírus sem apoio, sem equipamento e sem informações. “É como se eles estivessem sendo jogados num confronto com vendas nos olhos e desarmados”, afirma a pesquisadora.

Saúde em casa e nas ruas

A maioria dos participantes da pesquisa trabalha na Bahia (32%), em São Paulo (16%) e no Rio de Janeiro (14%). Cerca de 60% desempenham as funções de agente comunitário de saúde e de combate às endemias.

No conjunto das profissões do universo da saúde, esses agentes recebem algumas das mais baixas remunerações, mas a importância do trabalho que desempenham fica evidente nas crises sanitárias.

Com grande conhecimento do território em que atuam, eles percorrem casas e ruas para identificar necessidades de saúde, principalmente entre os mais vulneráveis. Assim como os profissionais que trabalham em hospitais, estão frequentemente expostos ao vírus e precisam de treinamento, equipamentos e valorização.

E depois da crise?

Em seu artigo para a Time, o historiador Rutger Bregman cita uma frase de Milton Friedman, um dos mais influentes economistas do século XX, escrita em 1982: “Somente uma crise — real ou percebida – produz mudanças verdadeiras. Quando essa crise ocorre, as ações tomadas dependem das ideias que estão por aí”.

Se o imenso trauma provocado pela pandemia levar a sociedade a valorizar a vida e os profissionais que zelam por ela (com salários, recursos e organização – coisas que precisam ser custeadas por impostos), teremos a possibilidade de elevar a saúde brasileira a um outro patamar. Não o do sonho, mas o da dignidade.

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Em “Unidade Básica” e na vida real, o valor da atenção primária na pandemia http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/05/20/na-serie-unidade-basica-e-na-vida-real-acoes-criativas-do-sus-na-pandemia/ http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/05/20/na-serie-unidade-basica-e-na-vida-real-acoes-criativas-do-sus-na-pandemia/#respond Wed, 20 May 2020 07:00:04 +0000 http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/?p=605

Os personagens da série “Unidade Básica” representam a importância dos profissionais de saúde dedicados à atenção primária (Foto: Pedro Saad/ Divulgação)

A segunda temporada da série “Unidade Básica” (exibida no canal por assinatura Universal TV e disponível também na plataforma de streaming Globosat Play) foi escrita quando só os roteiristas de ficção científica poderiam se interessar em criar a história de um vírus que pararia o mundo.

Os episódios retratam a rotina das equipes de atenção primária (a porta de entrada do Sistema Único de Saúde) na era pré-covid. Não poderia ser diferente.

Um enredo com todos os elementos delineados pela epidemia do novo coronavírus seria uma grande viagem (algo fora do propósito da série), mas a realidade tem se mostrado mais delirante que qualquer ficção.

Apesar de ter sido gravada antes da dramática crise sanitária atual, a série ressalta ingredientes que demonstram o valor da atenção primária no enfrentamento da pandemia.

Criatividade, iniciativa, vínculo com os pacientes, conhecimento do território em que atuam e disposição para as boas brigas são qualidades típicas das equipes que trabalham em milhares de Unidades Básicas de Saúde (UBS) espalhadas pelo Brasil.

São habilidades e comportamentos que aparecem, em diferentes situações, ao longo da saga dos médicos Paulo (Caco Ciocler) e Laura (Ana Petta), da enfermeira Bete (Carlota Joaquina) e do agente comunitário Malaquias (Vinícius de Oliveira).

“Unidade Básica”, da produtora Gullane, tem cara e gosto de vida real. Mantém os pés no chão e destaca as vulnerabilidades que a pandemia tem acentuado e jogado no ventilador todos os dias.

Os roteiros da terceira temporada vão incluir histórias dos profissionais que estão no front de combate à pandemia. Não só nos hospitais, como nas unidades básicas do país.

A infectologista Helena Petta e o ator Caco Ciocler nos bastidores das gravações (Foto: Divulgação)

Onde se ganha ou se perde a batalha

No momento em que os brasileiros se preocupam com a atenção hospitalar (se haverá leitos, respiradores ou remédio milagroso para os casos graves de covid-19), assistir à “Unidade Básica” ajuda a entender que a batalha pela vida começa a ser ganha (ou perdida) em uma etapa anterior, ainda na atenção primária.

“A atenção primária está exercendo um papel fundamental nesta pandemia”, diz a infectologista Helena Petta, uma das criadoras da série, ao lado da irmã e atriz Ana Petta. As equipes das UBS tentam fazer o isolamento dos casos de pessoas que são grupos de risco, mobilizam a rede de solidariedade e criam iniciativas inovadoras.

“Enquanto o Ministério da Saúde fica nesse troca-troca e não tem política nenhuma, há boas iniciativas nos lugares onde a atenção primária à saúde (APS) é forte”, diz Helena. Segundo ela, médicos de família têm ajudado as pessoas a se organizar nos bairros, identificando os mais vulneráveis e tentando conseguir hotéis sociais para quem não tem como se isolar em casa.

“Para quem mora em condições muito ruins, a rua é uma extensão da casa. Não adianta só dizer “fique em casa”, afirma a infectologista.

A perda de pacientes por covid-19 tem gerado grande sofrimento entre os profissionais de saúde das UBS. “Não são doentes que eles nunca viram. São pessoas que eles acompanham há 10 anos, conseguiram controlar a pressão, o diabetes, conhecem toda a família e, agora, vêem o paciente morrer de coronavírus”, diz.

“Uma amiga está acompanhando, o tempo todo, 20 pacientes sintomáticos pelo WhatsApp para ver se vão piorar, se vão ter falta de ar”, diz ela. “Dá aflição perceber que o Brasil poderia estar enfrentando essa pandemia de uma forma muito melhor se toda a estrutura do SUS tivesse sido potencializada nos últimos anos, em vez de ter sido sucateada”, afirma.

Foto: Ariela Bueno

Gente que faz acontecer

Apesar das limitações crônicas que enfrentam, profissionais de atenção primária têm adotado ações criativas para enfrentar a pandemia. Algumas delas foram apresentadas na semana passada em uma live transmitida pelo Portal da Inovação na Gestão do SUS. Destaco três dos exemplos citados:

Em Porto Alegre, uma UBS contra as fakenews

No início de março, logo que foram confirmados os primeiros casos positivos de covid-19 na capital gaúcha, os profissionais da unidade de saúde Costa e Silva, no bairro Rubem Berta, perceberam que era preciso melhorar a comunicação com a comunidade.

A forma mais simples e barata que encontraram foi criar o programa “Fica em Casa”, produzido e gravado pelos profissionais de saúde e transmitido por aplicativos de celular.

As gravações são feitas, também pelo celular, entre um atendimento e outro. Toda a equipe contribui para a criação dos roteiros. O programa trata de cuidados de saúde e serviços e aborda questões como violência contra a mulher e racismo.

“A gente conseguiu entender a comunidade e ser uma voz de confiança. Há muitas informações chegando, mas é difícil distinguir o que é fakenews”, contou a residente Mayara Floss, a idealizadora do projeto.

Em São Paulo, isolamento centralizado em escolas

Vizinha de mansões e prédios de luxo do Morumbi, Paraisópolis é um forte símbolo da desigualdade social. Com uma densidade demográfica de 45 mil pessoas por quilômetro quadrado, a maior do país, a comunidade criou uma estratégia de isolamento.

O Projeto Casulo (organizado por moradores, comerciantes e sociedade civil) promove o isolamento centralizado de pessoas sintomáticas com teste positivo para covid-19 e distribuição de máscaras, álcool gel e material informativo para pessoas com síndrome gripal.

As três UBS da região cobrem quase 80% da população. Os doentes são isolados em duas escolas, que foram adaptadas para ficarem parecidas com casas.

No Rio de Janeiro, a comunidade cancelou bailes funk

Na primeira semana de isolamento social no estado do Rio de Janeiro, a equipe da Clínica da Família Sérgio Vieira de Mello, no bairro Catumbi, na capital, se reuniu com associações de moradores das comunidades do entorno.

Segundo o médico de família e comunidade Rafael Cangemi, houve momentos em que os líderes do tráfico de drogas também participaram. “As comunidades possuem características e comandos com domínios diferentes”, diz. Com essas reuniões, os profissionais de saúde conquistaram o apoio dos moradores. Bailes funk foram cancelados porque houve a compreensão de que potencializariam a propagação do vírus.

A cada 48 horas, todos os pacientes atendidos com síndrome gripal recebem uma ligação telefônica. A equipe também procurou os pacientes com doenças crônicas que eram atendidos na unidade e passou a monitorá-los por telefone. Com a ajuda de agentes comunitários, os profissionais de saúde conseguiram identificar mulheres vítimas de violência e criaram um canal de comunicação por aplicativo de celular.

Conte a experiência de sua UBS

Nesta semana, o Ministério da Saúde e a Organização Pan-americana da Saúde da Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS) lançaram um chamado para ouvir as experiências de resposta à pandemia. O objetivo é dar visibilidade e reconhecer iniciativas que respondam às necessidades de saúde dos brasileiros.

Os relatos devem ser enviados até 8 de junho pela plataforma virtual ancorada no Portal da Inovação na Gestão do SUS. O link para participar do APS Forte no SUS – Combate à Pandemia está aqui. Sua história real pode ser capaz de inspirar e transformar.

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Covid-19 em crianças: com Down, bebê de 5 meses precisou de internação http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/05/13/covid-19-em-criancas-com-down-bebe-de-5-meses-precisou-de-internacao/ http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/05/13/covid-19-em-criancas-com-down-bebe-de-5-meses-precisou-de-internacao/#respond Wed, 13 May 2020 07:00:11 +0000 http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/?p=593

Foto: Arquivo pessoal

Há três semanas, a auxiliar de limpeza Josiane Dias dos Santos, 42 anos, notou que o filho parecia cansado. O bebê Carlos Rafael Dias, de 5 meses, ficava ofegante quando mamava ou se movimentava.

Josiane percebeu que ele não estava bem, mas imaginou que o problema estivesse relacionado à fragilidade natural do filho. Com Síndrome de Down, Carlos sofre de cardiopatia desde o nascimento.

A mãe não perdeu tempo. Saiu da comunidade em que vive, no Jardim Vila Galvão, em Guarulhos, e levou o bebê ao Instituto da Criança, no Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde Carlos nasceu e é acompanhado.

A hipótese diagnóstica levantada pelos médicos foi confirmada pelo exame genético: o bebê havia sido infectado pelo novo coronavírus. Embora os casos de covid-19 não sejam tão frequentes em crianças, eles existem e podem se agravar.

“É um erro pensar que criança não pega a doença ou que sempre se recupera facilmente”, diz o pediatra Werther Brunow de Carvalho, professor de terapia intensiva e neonatologia do Instituto da Criança da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). “A maioria apresenta quadros leves, mas casos de extrema gravidade existem”, diz ele.

O desespero

Quando soube que o filho seria transferido para a ala dos pacientes de covid-19, Josiane se desesperou. “Achei que meu bebê ficaria no meio dos adultos e acabaria morrendo”, diz ela. “Ficava imaginando que meu filho ia ficar preso num saco e ser enterrado, sem que me deixassem ver”, afirma.

Felizmente, a realidade foi outra. O bebê precisou de internação, mas não foi afastado da mãe. Josiane pôde amamentá-lo e acompanhar o tratamento.

“Todo o tempo a equipe cuidou de mim e do meu filho. Deus e o pessoal do hospital foram maravilhosos comigo. Olho meu bebê hoje e nem parece que ele teve essa doença”, diz ela.

Sem um comprometimento grave dos pulmões, Carlos voltou para casa depois de nove dias no hospital. Ele é uma das 28 crianças que receberam o diagnóstico de covid-19 na instituição. Três morreram. Oito continuam internadas (em enfermaria ou UTI). As demais estão em acompanhamento domiciliar.

A infecção

A família não sabe como o bebê foi infectado pelo novo coronavírus. “Como em casa todo mundo tem rinite e sinusite, pode ser que um de nós tenha contraído o vírus e nem percebeu”, diz ela.

Além do bebê, Josiane divide a casa com outros dois filhos (um de 14 anos e outra de 21) e um neto. Por enquanto, ela fica isolada com o bebê em um quarto e sempre usa máscara.

“Essa doença dá muito medo. Nem pude abraçar os meus filhos no Dia das Mães. A gente não sabe quanto tempo ela fica na pessoa, nem como vai se manifestar”, diz Josiane.

Incertezas da medicina

Assim como as famílias, os médicos também têm dúvidas. “Essa é uma doença desafiadora. A cada semana surgem fatos novos que podem dificultar o diagnóstico e o tratamento”, diz o pediatra Carvalho.

Em parceria com pesquisadores da USP de Ribeirão Preto, ele revisou a literatura científica sobre mais de 2 mil casos de crianças atendidas na China e na França e criou um protocolo brasileiro para ajudar médicos a fazer diagnósticos e a cuidar da melhor maneira possível desses pequenos pacientes.

O trabalho foi publicado na Clinics, a revista científica do Hospital das Clínicas, e está disponível aqui.

“Como a experiência mundial a respeito de covid-19 em pacientes pediátricos é muito menor do que em adultos, esse protocolo pode ajudar a melhorar a assistência e a pesquisa no Brasil”, afirma. “Essa doença está demonstrando que a medicina precisa de humildade. É preciso estudar, sem prepotência”, diz ele.

Segundo Carvalho, as incertezas começam na apresentação clínica. Embora os sintomas respiratórios sejam os mais frequentes, podem ocorrer também manifestações gastrointestinais (vômitos, diarréia etc).

Além disso, nas últimas semanas surgiram registros de sintomas semelhantes aos da Síndrome de Kawasaki, uma inflamação de todo o endotélio do organismo. A síndrome é grave porque altera, principalmente, as artérias do coração. Por enquanto, nenhum caso desse tipo foi registrado na instituição.

Como tratar

“Como tratar é a principal dúvida dos pediatras que atendem crianças com covid-19”, diz Carvalho. Medicações que têm determinado efeito em adulto podem ter outro em criança. As doses não são conhecidas. É tudo mais arriscado.

“Não vamos usar cloroquina em crianças”, diz o médico. Segundo ele, nos casos muito graves é possível pensar em hidroxicloroquina – menos tóxica. Ainda assim, as doses devem ser calculadas em miligramas por quilo.

A obesidade da população pediátrica brasileira é um complicador. “Ocorrem muitos erros de dosagem por causa disso”, diz ele. Há crianças de 7 anos que pesam 50 kg, quando o peso ideal seria em torno de 24 kg. “Imagine se alguém receitar hidroxicloroquina, que pode provocar morte súbita, multiplicando por 50 em vez de 24? Isso pode matar a criança”

A hidroxicloroquina foi incluída no protocolo elaborado por Carvalho, mas o uso deve estar reservado para situações extremas, desde que os pais assinem um termo de consentimento.

Os casos leves

A maioria dos 28 pacientes atendidos no Instituto da Criança teve uma boa recuperação. Nos casos leves, os sintomas foram amenizados com antitérmicos e inalação, sem que houvesse necessidade de qualquer tratamento específico.

Nos casos classificados como moderados, os pacientes foram internados em enfermaria. Apenas os graves ou críticos foram para a UTI pediátrica. “Na China, intubavam crianças e adultos muito mais precocemente. O aprendizado sobre os casos ocorridos no Exterior nos permite aguardar um pouco mais antes de colocar crianças em aparelhos de ventilação mecânica”, diz Carvalho.

Uma dose de bom senso

Enquanto não surge um medicamento específico contra a covid-19 ou uma vacina, o melhor que os pais podem fazer é imunizar os filhos contra a gripe. Isso ajuda os médicos a produzir diagnósticos corretos.

Bebês acima de 6 meses podem tomar a vacina contra a gripe. Quando recebem uma criança com sintomas respiratórios que foi vacinada contra a gripe, os pediatras podem desconfiar de outros vírus, entre eles o corona.

A crise sanitária que estamos vivendo exige bom senso dos pais e respeito aos profissionais de saúde. “As pessoas sempre esperam que a ciência e a medicina tenham a cura”, diz Carvalho.

“Não adianta levantar hipóteses ou suposições de cura (como a enorme expectativa criada em torno da cloroquina), se elas não forem comprovadas em bases seguras”, afirma o professor. “Países que encararam a pandemia com realidade e humildade se saíram melhor”.

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Covid-19, conflito em casa, desemprego: como a terapia online pode ajudar http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/05/06/covid-19-conflito-em-casa-desemprego-como-a-terapia-online-pode-ajudar/ http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/05/06/covid-19-conflito-em-casa-desemprego-como-a-terapia-online-pode-ajudar/#respond Wed, 06 May 2020 07:00:25 +0000 http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/?p=582

A psicóloga Dorli Kamkhagi, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo, coordena um grupo que oferece atendimento gratuito e online durante a pandemia (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

100 mil infectados. 7 mil mortes. E daí que o próximo pode ser você, eu ou nós dois.

Como lidar com essa perspectiva? Desde o início da pandemia de covid-19, o medo só não existe na cabeça de quem nega os fatos ou vive fora da realidade.

Talvez o novo coronavírus já esteja nas nossas mãos. Ou à espera de uma carona na próxima inspiração profunda. É paradoxal: o fluxo que revigora pode ser, também, o empurrãozinho aguardado pelo vírus para alcançar os pulmões.

No cenário mais inusitado de nossas vidas, o mundo ficou estranhamente ameaçador. Para todos os seres pensantes, sem distinção. Em maior ou menor grau, a falta de controle traz ansiedade e sofrimento. O que fazer com essa dor?

Pedir ajuda é uma escolha inteligente. Nos últimos dois meses, milhares de pessoas têm buscado apoio psicológico online para lidar com o confinamento e outras limitações impostas pela pandemia.

Do lado de lá da tela, há alguém que sabe ouvir

Uma das iniciativas que oferecem atendimento gratuito foi criada pelo Grupo de Envelhecimento do Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo.

Coordenado pelas psicólogas Dorli Kamkhagi e Ana Carolina Costa, um grupo de psicoterapeutas oferece ajuda psicológica breve (em algumas sessões on-line de 20 minutos) para pessoas acima de 50 anos.

No primeiro mês, 54 pessoas foram atendidas (80% são mulheres). As principais queixas são tristeza, medo, ansiedade e falta de perspectiva em relação ao futuro. Como há pessoas na fila de espera, a equipe planeja criar um grupo de atendimento presencial pós-pandemia.

“As pessoas estão pedindo socorro. Enquanto o mundo exterior ficou menor, o universo interior está adoecido”, diz Dorli. “Elas estão angustiadas, com raiva e sensação de impotência. Bebem mais, tomam ansiolítico e dormem. E, quando acordam, estão sem rumo”.

Como não podem explodir, muitos implodem. Em momentos assim, contar com apoio psicológico (ainda que em sessões breves) pode ser valioso.

“A escuta terapêutica amplia a representação do que cada um tem de si mesmo. A pessoa se percebe em um outro espaço. Ela sabe que é alguém e estabelece pontes para o futuro”, afirma Dorli.

A difícil convivência em pequenos espaços

O confinamento da família em pequenos espaços tem provocado desentendimentos ou graves conflitos. De uma hora para outra, todo mundo foi obrigado a passar o dia inteiro junto, disputando metros quadrados.

Se um quer trabalhar, outro quer ouvir música sem fones de ouvido. Um terceiro tem aula online, mas o quarto quer ver TV. O quinto resolve fazer ginástica no quintal ou na varanda, mas alguém foi mais rápido e abriu o varal de chão no mesmo espaço. Se não aproveitar o sol que, já, já, vai embora, a roupa não seca. E haja bom senso e capacidade de negociação…

“É interessante observar como algumas pessoas conseguem se reinventar mesmo na crise”, diz Dorli. “Parece que a parada obrigatória provocada pela pandemia gerou um movimento interno” (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

“Será que eu posso existir?”

Se não houver alguma flexibilidade, os conflitos podem ganhar proporções além do razoável. “Relações de casal que já não vinham bem tendem a piorar neste momento”, diz Dorli.

Não só as de casal. Uma paciente que buscou a terapia relatou que queria ajudar nas tarefas de casa, mas sentia que estava incomodando. Se entrava na cozinha, a filha reclamava porque o namorado já estava cozinhando.

Quando isso se repete em diversas situações, chega uma hora em que a pessoa se pergunta: será que eu posso existir?

“O que podemos sugerir em situações assim é que as pessoas tentem fazer alguns acordos. Combinar horários ou dias em que cada um quer usar a cozinha, por exemplo”, diz Dorli. “Muitas vezes esses conflitos causam dor porque já existem outras dores”.

A psicóloga observa que algumas pessoas já estavam fechadas para a vida. “Elas sabiam que podiam fazer coisas antes da pandemia, mas não estavam fazendo. Tinham um desejo, mas não estavam cuidando dele. Agora querem fazer e não podem”, afirma.

Quando a crise desperta um movimento

Como tantos brasileiros, muitas das pessoas atendidas estavam tentando voltar ao trabalho neste ano. Tinham esperança e, de repente, a pandemia interrompeu planos de dias melhores.

“Vi muita gente paralisada por essa situação tão adversa, mas é interessante observar como algumas pessoas conseguem se reinventar mesmo na crise. Nesses casos, parece que a parada física forçada gerou um movimento interno. Um movimento de vida”, diz Dorli.

Há quem pense em escrever, fazer bolos, vender marmitas. “Muita gente tem percebido que o pouco pode ser muito. Não querem parar, acham que é possível fazer coisas e pensam que não vão morrer de fome”.

A psicóloga acredita que a pandemia levará muita gente a repensar várias coisas e a encontrar o seu melhor. “Não vejo um mundo cor-de-rosa; vejo em tons de azul, verde, preto. Tenho meus momentos de depressão, mas tento lutar”, afirma Dorli.

Não existe mais a situação ideal. Existe a situação possível. E, dentro do possível, podemos muito.

 

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Proteger vida deveria estar acima da política, diz superintendente do HCor http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/04/22/a-protecao-da-vida-deveria-estar-acima-de-qualquer-disputa-politica/ http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/04/22/a-protecao-da-vida-deveria-estar-acima-de-qualquer-disputa-politica/#respond Wed, 22 Apr 2020 07:00:47 +0000 http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/?p=572

Anderson Lira/Frame Photo/Estadão Conteúdo

Na semana em que o governo de São Paulo anuncia a reabertura gradual da economia, a partir de 11 de maio, o blog conversou com o economista Fernando Torelly. Gaúcho e atual superintendente corporativo do Hospital do Coração (HCor), em São Paulo, Torelly é um profundo conhecedor do sistema de saúde suplementar (trabalhou nos hospitais Moinhos de Vento e Sírio-Libanês e na operadora Unimed) e de parcerias com o Sistema Único de Saúde (SUS).

VivaBem: Qual foi o impacto do isolamento social nas instituições de saúde?

Fernando Torelly: No Hospital do Coração (HCor), recebemos sete pacientes de covid-19 em meados de março. Um mês depois, havíamos chegado a 79 internados. Nas últimas semanas, tivemos uma queda. Hoje temos 63 pacientes internados. Graças ao isolamento social, iniciamos uma primeira redução no número de atendimentos.

VivaBem: O que pode acontecer quando a população voltar às ruas?

Fernando Torelly: O volume de atendimentos deve voltar a crescer, mas não acredito em um novo pico de casos na saúde suplementar. Se o fim do isolamento acontecer de forma gradual, planejada e organizada, como recomendam os técnicos da saúde, vamos conseguir fazer o achatamento da curva na saúde suplementar. Ainda assim, vamos ter que lidar com casos graves de covid-19 por, pelo menos, mais seis meses.

VivaBem: E no SUS (Sistema Único de Saúde)? 

Fernado Torelly: No SUS, a situação é extremamente difícil em cidades como Manaus, Fortaleza e Rio de Janeiro. Basta lembrar que os hospitais do Rio viviam uma grave crise antes da pandemia. Em São Paulo, há hospitais públicos grandes e importantes com 90% e até 100% dos leitos de UTI ocupados. Isso é uma grande preocupação.

Troca de ministro

VivaBem: Qual é a sua expectativa em relação ao novo ministro da saúde?

Fernando Torelly: O grande desafio do ministro Nelson Teich é não mais olhar o Brasil como um único país, mas planejar regiões, considerando o tamanho do surto e a infraestrutura de saúde. Algumas cidades brasileiras estão próximas de atingir o colapso. A questão agora é saber como o poder público vai se organizar para apoiar essas cidades. Entendo que o novo ministro é uma pessoa altamente qualificada. É médico e tem formação em gestão em altíssimo nível.

VivaBem: Ele terá condições de valorizar a pauta técnica?

Fernando Torelly: Ele tem todas as condições de dar continuidade ao trabalho que foi feito até agora e de organizar o equilíbrio entre saúde economia. Espero que ele tenha condições de ficar na pauta técnica, sem entrar na discussão política acirrada. Tenho certeza de que o setor privado vai apoiá-lo para que consiga ter sucesso. Nós, profissionais de saúde que convivemos com os doentes, não nos preocupamos em saber se ele é de direita ou de esquerda. Ele tem que ser o ministro da saúde do Estado brasileiro – e não do governo que hoje está no poder.

VivaBem: Qual é a sua avaliação sobre o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta?

Fernando Torelly: Penso que ele teve um posicionamento muito importante. Se o isolamento social não tivesse ocorrido da maneira como ocorreu, hoje poderíamos estar vivendo um pico acelerado de casos tanto no sistema público quanto no privado. Foi um ministro que soube se comunicar com a sociedade. Antes dele, meus filhos nem sabiam o que faz o Ministério da Saúde. Agora ficaram tristes com a saída do ministro.

O economista Fernando Torelly, do HCor: “A grande doação que os empresários de todos os setores da economia podem fazer neste momento é manter os empregos” (Foto: Divulgação)

VivaBem: Os profissionais de saúde estão com paciência para tantos embates políticos?

Fernando Torelly: Quem passa o dia nos hospitais, atendendo pacientes ou trabalhando para que as instituições funcionem, não têm condições emocionais de chegar em casa, ligar a TV, e ver os políticos brigando. Hoje muita gente não quer discutir política. Quer apenas discutir a proteção à saúde. Espero que sejam mantidas as medidas de isolamento social e, se houver abertura, que seja gradual, planejada e bem orientada. Que ao sair de casa (quando for possível sair) todo mundo saia diferente. Saia com uma obsessão pela proteção, pela higiene de mãos, pela máscara, pelo álcool gel.

VivaBem: O que pode acontecer se todo mundo voltar às ruas sem proteção?

Fernando Torelly: Podemos ter um novo pico que vai exigir restrição social e impactar a economia novamente. Para isso, a comunicação do governo é muito importante. O exemplo do governo é muito importante. Os brasileiros precisam entender que a pandemia é grave. Em vez de brigar, os governos, o presidente, os políticos têm que passar uma mensagem única para a sociedade. Uma mensagem de proteção. Precisamos de uma pauta dedicada à saúde. Para isso, está faltando grandeza.

Fila única de leitos

VivaBem: Qual é a sua opinião sobre a proposta de criação de uma fila única de leitos públicos e privados?

Fernando Torelly: Há situações diferentes em cidades e regiões. Imaginar que a área pública conseguirá construir, de uma hora para a outra, um sistema de regulação de uma fila única no Brasil, é arriscado. Não vejo isso como uma solução eficiente. Acredito muito mais na criação de um conselho que reúna o público e o privado para que, juntos, criem estratégias de enfrentamento.

VivaBem: De que forma a área privada deve apoiar o SUS?

Fernando Torelly: Hoje vamos reduzir seis dos nossos leitos de UTI para emprestar os equipamentos ao Hospital das Clínicas, que está com quase 85% de ocupação. À medida que a área pública precisar de mais apoio, não tenho dúvida de que os hospitais privados vão contribuir. Inclusive com a disponibilização de leitos para atender pacientes graves do SUS. São Paulo não está à beira do colapso porque ainda tem recursos públicos e privados para fazer esse enfrentamento. Em um município onde isso não estiver acontecendo, talvez a necessidade seja diferente. Cidades que já viviam uma grave crise de saúde pública antes da pandemia viverão um cenário muito pior. Não há como fazer um sistema de saúde ineficiente se tornar eficiente no meio de uma pandemia. Todos os dias fazemos uma videoconferência com mais de 140 instituições públicas para apoiá-las no enfrentamento da crise. Essa é uma das nossas ações dentro do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do SUS (PROADI-SUS).

VivaBem: O HCor será remunerado pelo empréstimo desses respiradores?

Fernando Torelly: Não haverá remuneração. Essa é uma discussão que não estamos fazendo. A receita do HCor deve cair 50% em abril. Tivemos um aumento de custo (contratamos 100 funcionários, alugamos equipamentos etc) e uma diminuição no número de atendimentos. Houve uma redução de 80% dos exames de medicina diagnóstica e das cirurgias eletivas. Criamos unidades para atender exclusivamente os pacientes de covid-19. Designamos 124 leitos para isso, mas apenas metade está ocupada. Temos 36 leitos de UTI só para covid-19, com taxa de ocupação de 50%. Quando emprestamos equipamentos ao Hospital das Clínicas, não estamos olhando o nosso resultado econômico. Vencer essa pandemia não é uma questão do público ou do privado. É uma luta de toda a sociedade.

A lição da pandemia

VivaBem: Com medo de se infectar, os pacientes deixaram de ir aos pronto-socorros?

Fernando Torelly: Antes da pandemia, atendíamos 170 pessoas por dia no pronto-socorro. Hoje apenas 50 nos procuram. Elas precisam saber que criamos fluxos totalmente separados para os pacientes de covid-19. Não dá para as pessoas ficarem em casa e ter o agravamento de seu problema de saúde porque estão com medo da covid-19. Continuamos atendendo infarto, AVC, fazendo cirurgias cardíacas. Os pacientes devem discutir com seus médicos se é hora ou não de fazer um procedimento.

VivaBem: Como os empresários de todos os setores da economia deveriam agir?

Fernando Torelly: A grande doação que os empresários podem fazer neste momento é manter os empregos. Só assim a economia poderá voltar a certa normalidade depois da pandemia. A indústria, o comércio, a iniciativa privada tem que fazer esse sacrifício. Ter um resultado péssimo neste ano, não distribuir dividendos porque essa é uma crise sem precedentes, mas manter o emprego dos trabalhadores. Só assim poderemos começar a retomada gradual da economia, daqui a um mês, sem a tragédia social do desemprego.

VivaBem: Qual é a grande lição da pandemia?

Fernando Torelly: A saúde conseguiu parar a economia do mundo. Essa tem que ser uma reflexão importante para os governos do mundo inteiro. Não dá para ter uma emergência sempre superlotada. Ela precisa ter um nível de ociosidade para que possa atender bem, caso ocorra uma catástrofe ou uma pandemia. A saúde não pode viver sempre no limite. É uma vergonha o Brasil não ter indústria para fornecer álcool e máscara cirúrgica. Vamos ter que montar uma indústria estratégica e ver de que forma será possível apoiar as instituições de saúde para que elas possam viver durante e após a pandemia. Não podemos deixar o setor de saúde fazer esse enfrentamento e depois voltar à situação de subfinanciamento, principalmente na área pública. Não adianta aplaudir os trabalhadores nas janelas e depois aceitar que eles sejam demitidos.

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Covid-19: mães contam como tentam proteger os filhos mais vulneráveis http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/04/15/covid-19-maes-contam-como-tentam-proteger-os-filhos-mais-vulneraveis/ http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/04/15/covid-19-maes-contam-como-tentam-proteger-os-filhos-mais-vulneraveis/#respond Wed, 15 Apr 2020 07:00:43 +0000 http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/?p=565

A fotógrafa Mara Garcia e o filho Pedro, de 22 anos. Com paralisia cerebral, ele respira por aparelho e vive em internação domiciliar. O desafio agora é protegê-lo do coronavírus (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Cenas como a da foto estão adiadas, até segunda ordem, na casa da fotógrafa Mara Garcia. Se a pandemia de coronavírus exige distanciamento físico, ela precisou encontrar outra forma de interagir com o filho. Por amor, ela obedece às orientações das autoridades de saúde.

No mundo de Pedro, que sofre de paralisia cerebral, o contato sempre abriu as portas da comunicação. Quando recebe um abraço, um beijo, um afago, ele sorri. Por meio desse código inventado pela convivência, a família deduz se o rapaz de 22 anos está confortável, tranquilo ou, quem sabe, até feliz.

Pedro não enxerga, não fala e não anda. Nasceu com uma síndrome rara, chamada de Sturge-Weber, que causa calcificação cerebral e convulsões de difícil controle. Depende de respirador e vive em home care há 21 anos.

“Não beijo mais meu filho no rosto. Agora, só nas mãos. Ainda assim, ele se alegra”, diz Mara.

Se a covid-19 tem provocado muitas baixas entre os profissionais de saúde, como Mara convive com o risco permanente de infecção em uma casa onde há revezamento de equipes de enfermagem? Como lida com o medo de contrair a doença e não poder cuidar do filho?

Mara e outras duas mães, cujas histórias foram publicadas no primeiro ano deste blog, contam como tentam proteger os filhos mais vulneráveis à infecção pelo novo coronavírus.

>> Conheça a história de Mara e Pedro

Calma, vai passar

“Vivo um luto anunciado a cada momento que imagino o coronavírus batendo à minha porta. Aí eu penso: ‘Calma, vai passar’.

Pedro está muito bem. Sem infecção, risonho como sempre, com as mesmas auxiliares de enfermagem. A única mesmice que não me dá tédio é constância do Pedro.

Adotamos uma série de medidas para evitar que a covid-19 nos alcance:

1) Quatro auxiliares de enfermagem se revezam. Quando chegam, tiram os sapatos e calçam chinelos deixados na porta.

2) Montei uma espécie de vestiário de hospital no quartinho dos fundos. As profissionais trocam de roupa, que eu mesma lavo. Bolsas e mochilas ficam nesse quartinho.

3) Elas desinfetam os celulares e fazem a higiene das mãos antes de subirem para o quarto do Pedro.

4)  Coloquei álcool gel em vários pontos da casa e pedi que as profissionais lavem as mãos mais vezes

5) Optei por não receber visita presencial do enfermeiro coordenador e da médica. Pretendo chamá-los só se houver necessidade

6) Limpo o quarto do Pedro com mais frequência que o habitual. Todos os dias, desinfeto o chão, as superfícies, as maçanetas, o corrimão da escada. Uma vez por semana, limpo as paredes (do teto ao chão), com cloro. Minha casa está com cheiro de piscina

Isolados por amor

Começamos um isolamento voluntário antes mesmo de o governo de São Paulo determinar a quarentena. Vou ao mercado apenas uma vez por semana. Compro tudo o que é necessário.

Não saio nem para ir à padaria. Quando volto para casa, tiro toda a roupa e coloco para lavar. Desinfeto embalagens e tudo o que chega por meio de entregadores.

Meus trabalhos, eventos corporativos que estavam marcados, foram todos cancelados. Estou totalmente dedicada aos cuidados para garantir que Pedro fique bem.

Meu outro filho, Bruno, trabalha em esquema de home office. Se ele sai para ir ao mercado, faz todo o ritual de desinfecção quando volta para casa. Ele disse que eu não me preocupasse por ter ficado sem renda nesse momento difícil.

Bruno trabalha para nos suprir, mas eu tento economizar ao máximo.

‘Prefiro você e meu irmão vivos’, ele disse.

Eu e Bruno nos isolamos por amor ao Pedro. Tenho me comportado como se eu fosse a paciente de risco. Se eu me contaminar, sei que posso colocar a vida de Pedro em risco.

Não posso blindar meu filho, mas faço o que posso. Não sou onipotente. Sou apenas mãe”.

Geovanna com os pais, Parima e Lucilene, durante festa junina em Boa Vista. Em isolamento por causa da covid-19, ela sente falta da escola (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

>> Conheça a história de Lucilene e Geovanna

Em 2017, a menina Geovanna de Queiroz Veras, 8 anos, sofreu graves complicações ao ser infectada pelo vírus chikungunya, transmitido pelo Aedes aegypti. Por causa do mosquito, ela passou três meses na UTI e enfrentou 60 sessões de quimioterapia.

A infecção desencadeou uma hiperativação do sistema imunológico, uma reação que pode ser fatal. Esse histórico exige que a família de Boa Vista, em Roraima, redobre os cuidados para evitar que Geovanna tenha contato com o coronavírus.

A funcionária pública federal Lucilene Coutinho de Queiroz Veras e a filha Geovanna contam como lidam com a ameaça da covid-19:

“Fomos a São Paulo em novembro. Os exames da Geovanna estavam todos bons. O próximo acompanhamento seria em abril. Desistimos de ir porque a médica recomendou que, neste momento, o melhor a fazer seria ficar em Roraima.

A maior inspiração

Estamos preocupados porque não sabemos como o corpo dela reagirá ao vírus. Seguimos as recomendações feitas aos pacientes vulneráveis. Ela deixou de ir à escola no início de março, antes mesmo das aulas serem interrompidas.

Tento não deixar que a energia ruim nos envolva e atenta a tudo o que entra em casa. Limpo tudo o que chega.

Tenho medo, mas também tenho fé. Minha filha diz não acreditar que vai passar por tudo de novo. Diz que o tempo de tratamento em São Paulo já deu a ela a cota de isolamento. Geo é a nossa maior inspiração na vida”.

 E Geo, o que pensa disso tudo?

“Fiquei muito triste quando soube que não poderia ir para a escola. Achei que fosse pegadinha. Como assim? Passei 5 meses direto no hospital, sem poder sair. Mas entendo que preciso tomar cuidado.

Pessoas como eu já tiveram que fazer quimioterapia. Não é muito legal. Tem que ficar numa bomba. Às vezes, dá enjôo. Fazer um tratamento longo, ficar longe de sua cidade. Depois de tudo isso ficar vulnerável à covid-19 é muito triste.

Meu pai só sai para comprar comida. Tem que lavar as compras. Lavar todas as embalagens antes de guardar.

E se os meus pais pegarem o coronavírus? Tenho medo. E também tenho medo de repetir de ano.

Quando descobrirem a vacina vai ser muito bom. Todo mundo vai poder viver a vida. Continuar com a vida normal e sem medo.

Estou suportando, mas não aguuuuuuuuento mais. Quero ver todo mundo de volta. Quando a quarentena acabar, vou sair por aí, abraçando todo mundo”

Simone com a irmã Viviane e a mãe Claudete, em São Paulo, no ano passado. Quase dois anos depois do transplante de fígado, a família tenta protegê-la do coronavírus (Foto: Cristiane Segatto/ UOL VivaBem)

>> Conheça a história de Claudete e Simone

Há quase dois anos, Simone Maria Moraes Alves, 43 anos, portadora de Síndrome de Down, sofreu uma grave hepatite autoimune e precisou de um transplante de fígado com urgência. Sem ele, a paciente viveria poucos dias. Horas, talvez.

A história de Simone tornou-se um caso incomum na medicina. Ela foi escolhida como a melhor receptora de um órgão doado, apesar de alguns desafios clínicos e de dúvidas relacionadas à sua capacidade de autocuidado.

A cirurgia salvou a vida de Simone. Como todo transplantado, ela toma imunossupressor para evitar rejeição ao órgão. E, por isso, a família precisa fazer o máximo para evitar que ela seja infectada pelo coronavírus.

A nova rotina

O depoimento da professora Claudete Mutti Moraes Alves, mãe de Simone:

“Depois do transplante, Simone foi melhorando um pouco mais a cada dia. Ela ainda é bastante dependente do meu auxílio por uma série de razões, mas está muito bem.

Antes do coronavírus, íamos ao supermercado e à igreja, fazíamos visitas, passeávamos Estivemos na praia duas ou três vezes. Nossa vidinha estava sossegada. Dormíamos bem, na paz de Deus.

Agora a rotina mudou. Como Simone toma imunossupressor para evitar rejeição ao órgão transplantado, ela está no grupo dos mais vulneráveis. Não só ela. Eu também, por causa da idade. Vou completar 74 anos.

Decidimos que o melhor a fazer seria nos isolarmos em casa, em Bragança Paulista, no interior de São Paulo.

Até quando?

Faz um mês que, praticamente, não saímos de casa. Passamos o dia aqui, com a nossa cachorrinha Elis. As compras chegam por delivery.

A rotina da Simone está bastante prejudicada. Ela não quer fazer uma ginástica comigo. Não quer caminhar pela casa. Aqui até teria um espaço suficiente para a gente dar uma volta pela casa, pegando uma área externa. Ela não quer fazer.

Assim vamos passando os nossos dias. Sou uma pessoa tranquila e de muita fé. Tenho me ocupado bastante em acompanhar a TV católica. Rezo o terço todos os dias, acompanho a missa, penso em Deus e nisso tudo que está acontecendo.

Tenho medo. Não tanto por mim e pela Simone (acho que aqui estamos preservadas), mas pelo que acontece no mundo. O que vai ser depois desse período? Até quando vamos viver esse momento difícil? Rezar faz muito bem”.

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Coronavírus: como hospitais públicos se preparam para encarar o tsunami http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/04/08/coronavirus-como-hospitais-publicos-se-preparam-para-encarar-o-tsunami/ http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/04/08/coronavirus-como-hospitais-publicos-se-preparam-para-encarar-o-tsunami/#respond Wed, 08 Apr 2020 07:00:35 +0000 http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/?p=551

À espera dos pacientes graves, a enfermeira Jéssica (segunda da dir. para a esq.) e a equipe de emergência da Fundação Hospital Centenário, em São Leopoldo (RS), aprenderam métodos que ajudam a aumentar a capacidade de atendimento durante a crise (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Por medo ou por bom senso, muitos brasileiros têm evitado ir aos pronto-socorros quando a queixa pode esperar. Profissionais de saúde acostumados a trabalhar em emergências lotadas ganharam algum fôlego, mas ele deve durar pouco.

“A queda do movimento criou uma falsa ilusão entre os profissionais, mas o que estamos vivendo é um cenário de transição”, diz Welfane Cordeiro, coordenador médico do projeto Lean nas Emergências, uma das ações do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (PROADI-SUS), do Ministério da Saúde.

“O mar está recuado, mas um enorme tsunami vem aí”, afirma Vânia Bezerra, superintendente de responsabilidade social do Hospital Sírio-Libanês.

Como contrapartida das isenções fiscais que recebe, o Sírio-Libanês assumiu, em 2018, a missão de treinar uma centena de hospitais públicos brasileiros para desafogar pronto-socorros.

A epidemia de covid-19 complicou o desafio. A equipe foi incumbida pelo Ministério da Saúde de preparar essas instituições e outras dezenas de hospitais em todas as regiões do Brasil para responder ao crescimento acentuado da demanda previsto para as próximas semanas. Como fazer isso?

Os médicos Leandro Muraro Bortolini (em pé) e Tulio Serrano no container onde os pacientes são avaliados. Se necessário, o doente segue direto para a emergência exclusiva para casos de covid-19 (Foto: Divulgação/UOL VivaBem)

Médicos no container

Cada hospital tenta adaptar as diretrizes do Lean nas Emergências à sua própria realidade. Em São Leopoldo, município da região metropolitana de Porto Alegre (RS), a enfermeira Jéssica da Silva Pinto coordena a emergência da Fundação Hospital Centenário.

Na instituição de 157 leitos, 40 foram reservados para pacientes de covid-19. Desses 40 leitos, dez têm respiradores. Até a terça-feira (7), o hospital havia registrado apenas um caso confirmado de infecção pelo coronavírus. O paciente foi transferido em estado grave para o Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

“Uma das grandes estratégias trazida pelo pessoal do Lean nas Emergências foi a criação de uma triagem avançada (feita em uma tenda fora do prédio do hospital)”, diz Jéssica. Técnicos de enfermagem e voluntários abordam os pacientes antes da entrada no hospital.

Eles são avaliados pelos médicos dentro de um container. De lá, voltam para a casa com medicação ou seguem para a emergência exclusiva para casos suspeitos de covid-19.

“Isso ajuda a organizar o fluxo de doentes e reduz o risco de infecção de outros pacientes”, afirma Jéssica.  A equipe sabe que, apesar da organização adotada para adequar o serviço, os esforços não serão suficientes para atender a demanda.

Fique em casa

“Estamos preparados, mas ansiosos. O que será que está por vir?”, pergunta a enfermeira. Os profissionais fizeram vídeos para pedir à população que fique em casa.

“Eu me preocupo com a equipe das nossas emergências. Temos materiais de proteção individual, mas eles têm medo de transmitir o vírus a seus filhos ou pais idosos. Alguns até saíram de casa. Fico com o coração na mão”, afirma Jéssica .

Medicina de guerra

O ponto de partida do Plano de Resposta Hospitalar ao Covid-19, do Ministério da Saúde, vem da medicina de guerra. Um conjunto de estratégias para ajudar os hospitais, de forma planejada, a ampliar sua capacidade de atendimento em até 20%.

Um hospital de 400 leitos, por exemplo, passaria a funcionar com 480. “Antes de buscar recursos externos, como hospital de campanha, é preciso ajudar as instituições a atingir a capacidade máxima que elas podem ter”, diz Cordeiro.

De acordo com o plano, os hospitais estão sendo orientados a criar um gabinete de crise (comando que passa por cima de todas as contra-ordens que podem existir em um hospital) e a atribuir, de forma clara, novos papeis aos profissionais durante a crise.

Com a ajuda da equipe do projeto Lean nas Emergências, do Ministério da Saúde, os profissionais de São Leopoldo adotaram uma sinalização clara para facilitar o fluxo dos pacientes (Foto: Divulgação/UOL VivaBem)

Parece simples, mas não é

“Se um hospital tem 20 leitos de recuperação pós-anestésica e as cirurgias eletivas foram adiadas, essa área pode virar uma UTI adicional e os anestesistas ficam responsáveis pela ventilação mecânica desses pacientes”, diz Cordeiro.

Essa reorganização parece simples, mas não é. “Os hospitais não sabem nem como começar a montar um comitê de crise”, afirma Vânia. Em um momento de crise é importante que todos saibam quem lidera, quem é o comunicador do grupo, quem cuida dos suprimentos, quem faz o censo diário etc.

“Os hospitais não têm essa organização, mas ela é fundamental para enfrentar a epidemia”, diz Vânia. Para ela, é hora de mesclar as equipes. Ou seja: treinar alguém que estava na área de imagem, por exemplo, para lidar com paciente de covid-19.

“Se não fizermos isso agora, quando a epidemia atingir o pico os profissionais da linha de frente vão estar esgotados e os substitutos não terão preparação suficiente. Isso será uma tragédia anunciada”, afirma Vânia.

Para reduzir o risco de contaminação, a triagem dos pacientes é feita fora do prédio do hospital (Foto: Divulgação/UOL VivaBem)

Hora do desabafo

Todos os dias, durante a crise, o líder tem que sentar com a equipe e deixar que as pessoas desabafem. Esse momento, chamado de “debriefing”, é uma das estratégias recomendadas no plano do Ministério da Saúde. “As pessoas vão estar estressadas e serão obrigadas a tomar decisões difíceis o tempo todo. O líder tem que saber ouvir”, diz Cordeiro.

E quando faltar respirador?

Conversar pode aliviar o stress, mas não resolve falta de respirador, o recurso mais nobre nesta epidemia. A crise na Itália se acentuou no momento em que não havia mais ventilação mecânica e equipes de saúde (que acabaram infectadas, esgotadas ou afastadas).

“Essa é uma situação extrema, na qual é preciso escolher qual paciente deve ter a chance de ir para o ventilador e qual vai apenas receber morfina”, diz Cordeiro. “Se chegarmos a esse ponto, as equipes terão que fazer escolhas difíceis. E haverá muitas perdas”.

Em São Leopoldo, a enfermeira Jéssica afirma que, para quem faz plantão nas emergências brasileiras, esse tipo de escolha se faz necessária em alguns momentos.

Com a covid-19 será diferente? “Não queremos que aconteça o pior, mas estamos nos preparando para ele”.

 

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Coronavírus: infectado aos 28 anos, médico perde a mãe e a avó em três dias http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/04/01/coronavirus-infectado-aos-28-anos-medico-perde-a-mae-e-a-avo-em-tres-dias/ http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/04/01/coronavirus-infectado-aos-28-anos-medico-perde-a-mae-e-a-avo-em-tres-dias/#respond Wed, 01 Apr 2020 07:00:15 +0000 http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/?p=534

A família reunida em dia de festa. Douglas com a avó Iracema, o pai Claudinei e a mãe Rita de Cássia. As duas morreram por complicações decorrentes da infecção pelo coronavírus (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Nas últimas duas semanas, o coronavírus afetou gravemente a família do médico Douglas Sterzza Dias, 28 anos. Em três dias, ele perdeu a mãe e a avó. Um tio está na UTI. Outro já sente falta de ar. “É notícia ruim atrás de outra pior”, disse Douglas, também infectado, ao blog.

Ele trabalha no Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e em outros serviços públicos. Em um depoimento contundente, Douglas descreve as dores emocionais e os danos físicos provocados pela covid-19.

O jovem médico, que faz residência em cirurgia vascular, precisou interromper a quarentena para enterrar a mãe. Sozinho, sem ter ninguém para abraçar, viu o caixão ser transferido do carro funerário direto para a cova. “Para a minha família não foi uma gripezinha”.

Parecia, mas não era

Minha mãe, Rita de Cássia, teve os primeiros sintomas no domingo (15). Fui passar o final de semana com eles, em Santana. Ela disse que estava com dor no corpo. Pareciam sintomas gripais. Não tinha tosse, febre.

Na terça, ela já estava muito mal, com falta de ar. Trouxe minha mãe para minha casa, na Vila Mariana, para levá-la ao Hospital São Paulo. Naquele dia, ela já ficou internada. Não conseguia respirar direito. Nesse mesmo dia foi entubada na UTI.

A parte renal também foi comprometida. Ela precisou fazer diálise. Os rins não aguentaram a doença e todas as medicações que foram usadas. Isso é algo que começa a ser descrito. Parece que o coronavírus ataca não só a parte pulmonar, mas também a renal.

Minha mãe teve uma infecção bacteriana na corrente sanguínea. No final das contas, isso é que foi o pior. Ela sofreu um choque séptico e não conseguiram reverter. Morreu, aos 55 anos, na última sexta-feira.

Como fiquei ao lado dela no hospital, precisei ser isolado no meu apartamento. Meu pai e minha irmã ficaram isolados na casa deles.

Dor em família

Enquanto minha mãe estava internada, meu tio também começou a apresentar sintomas e foi internado na UTI. Hoje soube que outro tio está com dificuldades respiratórias. É notícia ruim atrás de outra pior.

Não sabemos onde minha mãe pode ter se infectado. Depois que a transmissão se torna comunitária nem adianta pensar nisso.

Minha avó Iracema, de 85 anos, havia caído em casa e, por isso, não conseguimos isolá-la totalmente. Os filhos precisaram se revezar para não deixá-la sozinha. Ela soube que minha mãe estava na UTI.

Alguns dias depois minha avó começou a delirar. Teve uma hipoxemia grave (deficiência de oxigênio no sangue), ficou toda roxa e foi levada para o Hospital Sancta Maggiore, da Prevent Senior.

A tomografia revelou que o pulmão estava comprometido, com sinais de infecção pelo coronavírus. Ela foi para a UTI.

Douglas e a avó Iracema, na imagem que ele escolheu para postar nas redes sociais quando ela morreu. Não houve velório, nem despedida (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Sem velório

Quando sofreu uma parada cardíaca, a família decidiu não tentar nenhuma medida heroica. Isso só prolongaria o sofrimento. Priorizamos medidas de conforto. Ela sofreu mais uma parada cardíaca três dias depois e acabou falecendo.

Morreu antes da minha mãe. Não pudemos fazer velório. Somos uma família de origem italiana. Gostamos de estar juntos, sempre com muito contato e muita alegria, mas não pudemos nos reunir para a despedida.

Última cena

Não está sendo fácil. Posso dizer que a covid-19 não é uma gripezinha. Para a minha família não foi.

Em três dias, perdi minha avó e minha mãe. No hospital, me deram a oportunidade de vê-la pela última vez. Não quis. Como médico, sei o que iria encontrar. Não queria vê-la entubada, inchada, cheia de bomba.

Sei que ali eu não veria a mãe que sempre tive. Preferi guardar a imagem dela ainda viva, sorrindo para mim através do vidro da UTI.

Solidão no cemitério

Precisei escapar da quarentena para cuidar do sepultamento. Não queria que meu pai se expusesse. Ele é idoso e diabético. Tive que reconhecer o corpo da minha mãe no necrotério do Hospital São Paulo.

Foi tudo muito rápido. Os funcionários estavam com medo do contágio. Depois o caixão foi lacrado. Dei o endereço do cemitério para o serviço funerário. Sozinho, de máscara, peguei meu carro e fui dirigindo até lá.

Pelo caminho via gente fazendo caminhada e correndo nas ruas, como se nada estivesse acontecendo. As pessoas ainda não entenderam que estamos vivendo algo muito grave. Elas não têm ideia da dimensão do problema.

O corpo da minha mãe saiu do carro funerário direto para a cova. Fui a única testemunha da família. Eu ali, sem ter ninguém para abraçar e compartilhar a minha dor. Peguei o carro e voltei para o meu isolamento.

Iracema, 85 anos, e a filha Rita de Cássia. Aos 55 anos, Rita foi a primeira a apresentar sintomas da infecção pelo coronavírus. Ela morreu três dias depois da mãe (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Vida na quarentena

Passei duas semanas preso no apartamento. Logo que recebi o diagnóstico avisei ao zelador do prédio. Não faz sentido esconder. Colocaram álcool gel nas áreas comuns.

Pedi para a faxineira não vir para não se infectar. Cozinho ou peço entregas. O zelador me ajuda, trazendo comida até a porta da minha casa. Preenchi o tempo assistindo a séries. Tentei não ver noticiário demais.

Felizmente, os meus sintomas não foram tão graves. No dia em que a minha mãe foi internada, eu comecei a ter muita dor no corpo, nariz entupido, coriza. Muita dor de cabeça e tosse.

Também perdi o olfato e o paladar. Só sei se a comida é quente ou fria. Não consigo perceber o que estou comendo. Nem dá vontade de comer.

Profissão de risco

Retorno ao trabalho no Hospital São Paulo nesta semana. Como as cirurgias eletivas foram interrompidas, estou preocupado também com o meu aprendizado.

A residência é o momento em que o cirurgião treina. Como vou treinar cirurgia vascular se não há procedimentos? Se não faço isso agora, no meu tempo de residência, não terei a oportunidade de aprender lá na frente. Talvez o meu ensino fique prejudicado. É uma balança muito difícil de equilibrar.

Trabalho nesse e em outros hospitais do SUS. Há vários colegas afastados. Tenho um colega ortopedista que passou cinco dias na UTI, dois no quarto e teve alta hoje. Uma pessoa de 27 anos que ficou mal. Ele é atleta, sem nenhuma doença pré-existente.

Essa história de que em atleta a infecção é só uma gripezinha não é bem assim.

Os profissionais de saúde estão com medo de pegar o vírus. Não há equipamento de segurança para todo mundo. Máscara, óculos ou aquela proteção que plástico que cobre o rosto todo, touca, avental descartável. Ainda temos isso no Hospital São Paulo, mas muitos lugares não têm para todo mundo.

Não dá para trabalhar sem equipamentos de proteção individual (EPI). Mesmo que a pessoa tenha contato com o vírus, ela pode se reinfectar com alguma outra cepa. Na China, há casos de reinfecção de profissionais de saúde.

Como lidar

Prezo pela vida humana antes de qualquer coisa. Estudei para isso. Se as pessoas não estiverem vivas, não haverá quem pense em economia.

Eu me agarro à fé. Sou espírita, como toda a minha família. Acreditamos que ninguém parte antes da hora. Minha mãe criou dois filhos muito bem. Penso nisso e na missão que ela cumpriu.

Como médico, talvez eu tenha uma relação um pouco diferente com a morte. Lidamos com ela o tempo todo.

É claro que é mais difícil quando acontece com um ente querido. Ou com várias pessoas queridas ao mesmo tempo. Choro todos os dias.

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Sem trabalho, anestesistas querem cuidar dos doentes graves do coronavírus http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/03/25/sem-trabalho-anestesistas-querem-cuidar-dos-doentes-graves-do-coronavirus/ http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/03/25/sem-trabalho-anestesistas-querem-cuidar-dos-doentes-graves-do-coronavirus/#respond Wed, 25 Mar 2020 07:00:28 +0000 http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/?p=526

Crédito: iStock

Há poucos dias, o anestesista Enis Donizetti Silva, ex-presidente da Sociedade de Anestesiologista do Estado de São Paulo, armou-se de máscaras de soldador. Comprou óculos e essa espécie de capacete de plástico para distribuir aos colegas.

O objetivo é reforçar a proteção oferecida pelos materiais de segurança que os profissionais já usam no dia a dia.

Embora não substituam as máscaras de alta filtração necessárias para atender casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo coronavírus, os tais capacetes simbolizam o espírito geral dos profissionais de saúde que vão para a linha de frente em tempos de medo e escassez.

Vai faltar muita coisa na batalha pela sobrevivência, mas o foco das atenções tem recaído sobre a insuficiência de respiradores e leitos de UTI para atender os doentes graves. Em entrevista ao blog, Silva faz uma proposta inusitada:

Que tal transformar as salas de cirurgia (agora ociosas) em leitos de UTI e permitir que os anestesistas (agora sem nenhum ou com pouco trabalho) cuidem desses pacientes?

VivaBem: Qual é o impacto atual do coronavírus nos serviços de saúde?

Enis Donizetti Silva: As coisas nem começaram a esquentar. Nos próximos 20 dias haverá um grande crescimento no número de infecções. Imagine o que vai acontecer quando houver uma aceleração da transmissão comunitária nas favelas. Como isolar o doente em cômodos onde vive tanta gente? Podemos esperar uma carnificina.

VivaBem: O sr. atua em três grandes hospitais privados de São Paulo: Sírio-Libanês, Samaritano e Oswaldo Cruz. Qual é a situação?

Enis Donizetti Silva: Os casos de transmissão comunitária que chegam às instituições privadas ainda ocorrem em pequeno número. A maioria dos pacientes contraiu o vírus no Exterior. Gente de classe média alta que pode buscar atendimento no Sírio-Libanês, no Einstein, no HCor etc. Hoje o coronavírus responde por menos de 5% do volume de internação. A expectativa é a de que essa demanda chegue a 70%.

Tensão o tempo inteiro

VivaBem: Os profissionais de saúde estão com medo?

Enis Donizetti Silva: Estamos extremamente preocupados. Parte dos infectados pode transmitir o vírus mesmo sem ter sintomas. Algumas instituições, como o Sírio-Libanês, solicitaram que médicos acima de 65 anos não venham ao hospital nesse período. Entre os profissionais de saúde, há tensão o tempo inteiro. Eles vão para a linha de frente, mas com medo.

VivaBem: Com a suspensão das cirurgias e dos procedimentos eletivos, os anestesistas vão ficar sem trabalho?

Enis Donizetti Silva: Como não são assalariados, eles vão perder grande parte da renda mensal. Os procedimentos eletivos correspondem a 95% do movimento da anestesia. Um hospital privado que fazia 500 endoscopias por dia, de repente, fecha o serviço. E esse é só um exemplo. No meu setor, estamos fazendo um acordo com os anestesistas. Em vez de trabalhar quatro semanas, cada profissional vai trabalhar semana sim, semana não. Com isso, pelo menos vai conseguir receber alguma coisa.

Salas ociosas e pacientes no corredor?

VivaBem: Essa força de trabalho poderia ser aproveitada em outras funções durante a pandemia de coronavírus?

Enis Donizetti Silva: Eles poderiam ajudar a cuidar dos infectados que vão precisar de terapia intensiva. No centro cirúrgico, mais de 20% dos pacientes são de alto risco. O meu aparelho de anestesia é comparável a um ventilador de terapia intensiva. Ele tem os mesmos recursos de ventilação. Em muitos centros cirúrgicos, os aparelhos de anestesia são melhores que alguns ventiladores da UTI. Hoje, se um paciente com grave insuficiência respiratória precisa ser operado, consigo reproduzir no centro cirúrgico a mesma ventilação que ele estava usando na terapia intensiva. Não preciso ser treinado em ventilação mecânica ou monitorização hemodinâmica em paciente de alto risco. Isso já faz parte da minha rotina.

VivaBem: Os anestesistas estão preparados para lidar com os infectados que vão precisar de cuidados intensivos?

Enis Donizetti Silva: Lidar com doentes de alto risco faz parte da minha rotina e de muitos outros colegas. São pacientes com doença vascular crônica, com doença renal crônica, com doença pulmonar crônica, com lesão neurológica, AVC, infectados em situações agudas. Somos uma força de trabalho que não pode ser dispensada. Vai faltar leito nas UTI’s e vamos fazer o quê? Colocar o paciente entubado no corredor? Fazer isso em um hospital com 25 salas de cirurgia ociosas será um despropósito.

Milhares de leitos extras

VivaBem: Seria possível isolar os pacientes nas salas de cirurgia?

Elias Donizetti Silva: Se um hospital tem 20 salas de cirurgia, é como se ele tivesse 20 boxes de terapia intensiva isolados entre si. Tem uma sala de recuperação pós-anestésica onde cabem 15 pacientes. Hospitais assim já têm recurso e estrutura montados. Não é preciso comprar aparelho. Não precisa comprar monitor, ventilador. Duvido que a indústria consiga fabricar isso a tempo. Existem mais de 25 mil salas de cirurgia no país. Elas poderiam ser usadas como milhares de leitos extras de UTI.

VivaBem: De tudo o que é feito em uma UTI, que tipo de procedimento não faz parte do dia a dia do anestesista?

Elias Donizetti Silva: A nutrição, por exemplo. Se o paciente fica 10 dias internado em terapia intensiva, ele vai precisar de nutrição. Hoje existem nos hospitais grupos multidisciplinares relacionados à nutrição enteral e parenteral. Não há um time de nutrição dentro da UTI. Existe esse time externo que dá suporte para a semi-intensiva, para a UTI, para os pacientes internados em outras alas. Em vez de ir a cinco lugares, agora esse grupo passaria a ir também ao centro cirúrgico. Pronto! Nada demais.

Como aproveitar essa mão de obra

VivaBem: Os hospitais privados discutem a ideia de colocar esses pacientes nas salas de cirurgia?

Enis Donizetti Silva: Ninguém nos chamou formalmente e disse: “Vamos fazer uma capacitação curta e deixar vocês como uma força auxiliar”. Conversei com colegas dos principais hospitais privados de São Paulo e de vários estados. Todos disseram que não foram chamados pelas instituições para discutir isso. Essa atitude não tem nenhum bom senso. Como desprezam essa força de trabalho? Dos cerca de 20 mil anestesistas do país, pelo menos 4 mil têm condições de cuidar desses doentes.

VivaBem: E os outros profissionais de saúde que trabalham nos centros cirúrgicos?

Enis Donizetti Silva: Com a interrupção das cirurgias eletivas, temos ali técnicos de enfermagem, técnicos de engenharia, auxiliares de enfermagem, enfermeiras. É recurso humano que está sendo pago. Não dá para deixar de aproveitar essa mão de obra.

Obstáculos e preconceito  

VivaBem: Por que essa proposta  não foi cogitada nos planos de contingência?

Enis Donizetti Silva: É isso que não entendo. Você sabe que para entrar no centro cirúrgico é preciso trocar de roupa. Acho que muitas das pessoas que estão fazendo os planos de contingência nunca quiseram trocar de roupa para entrar no centro cirúrgico. Por isso, elas nem sabem o que há lá dentro. Quando dizem que vai faltar respirador, eles não entenderam. Estão enxergando obstáculos que não existem.

VivaBem: Os gestores dos hospitais sabem quais são os recursos existentes em um centro cirúrgico. Por que eles não cogitam aproveitar essa força de trabalho?

Enis Donizetti Silva: Acho que existe um pouco de preconceito. Pensam que os anestesistas não estão capacitados para cuidar desses pacientes. E eles estão. Hoje já cuidamos de pacientes com insuficiência respiratória grave, com insuficiência renal aguda, insuficiência renal crônica dialítica e não dialítica etc. Esses doentes são operados de fratura de colo de fêmur, são submetidos a cirurgias abdominais, neurocirurgias, transplantes de fígado, coração, pulmão. E quem manipula as drogas e cuida desses doentes no centro cirúrgico é o anestesista. O nosso conhecimento é muito estruturado. Há outra vantagem: na UTI há dois plantonistas para cuidar de mais de 15 pacientes. No centro cirúrgico, tenho um anestesista para cada sala.

Medicina de guerra

VivaBem: No Exterior, anestesistas podem cuidar de pacientes de terapia intensiva?

Enis Donizetti Silva: Na Europa isso é feito rotineiramente em vários lugares. Nos Estados Unidos, mais de 30% dos anestesistas trabalham na anestesia e na terapia intensiva. No Brasil, não sabemos quantos anestesistas tem o título de especialista em terapia intensiva. Mas acho que neste momento os anestesistas deveriam ser aproveitados nessa função tanto nos hospitais privados quanto nos públicos. Em uma semana, seria possível fazer uma capacitação mínima (com conteúdos sobre nutrição, troca de antibióticos, métodos de proteção etc) para que os anestesistas assumissem essa função durante a crise do coronavírus. Com a liberação do uso de telemedicina pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), os anestesistas que estiverem atendendo esses doentes podem, eventualmente, tirar dúvidas por videoconferência, em tempo real, com os intensivistas.

VivaBem: O sr. é vice-presidente da Fundação para Segurança do Paciente. Será possível seguir as normas de segurança em um momento como este?

Enis Donizetti Silva: Vamos tentar fazer isso o tempo inteiro, mas a chance de acontecer coisas fora do planejado é bem razoável, infelizmente. Em algum momento vai ser medicina de guerra mesmo. Será uma coisa estonteante. Estaremos com doze doentes para cuidar, sem ter a mínima estrutura. Mais uma razão para o Brasil não desprezar essa força de trabalho auxiliar. Ela vai se mostrar necessária.

 

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Coronavírus e idosos: “É hora de ver Faustão e socializar pelo Facebook” http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/03/13/idosos-e-coronavirus-e-hora-de-ver-faustao-e-socializar-pelo-facebook/ http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/2020/03/13/idosos-e-coronavirus-e-hora-de-ver-faustao-e-socializar-pelo-facebook/#respond Fri, 13 Mar 2020 13:58:03 +0000 http://cristianesegatto.blogosfera.uol.com.br/?p=517

Crédito: iStock

Na última quinta-feira (12), o epidemiologista Alexandre Kalache foi ao Aeroporto de Lisboa para tentar antecipar a volta ao Brasil. Não conseguiu. Voo lotado e fila de espera.

Aos 74 anos, o gerontólogo que dirigiu o programa de envelhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) durante mais de uma década é, ele próprio, um idoso.

Kalache faz parte, portanto, do grupo mais vulnerável na atual pandemia provocada pelo novo coronavírus (covid-19).

De Lisboa, o presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil conversou com o blog sobre o medo de se infectar, a melhor forma de proteger os idosos e os limites do nosso sistema de saúde.

O epidemiologista Alexandre Kalache, em Lisboa. “Tenho medo do vírus e do pânico”, diz. (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

VivaBem: Diante dos acontecimentos na Europa, o que podemos esperar no Brasil?

Alexandre Kalache: O que pode acontecer no Brasil é uma incógnita. O que sabemos sobre o vírus é o que aconteceu em ambientes de clima frio. Ninguém sabe se o vírus vai ter um comportamento mais ou menos agressivo (ou igualmente agressivo) em um clima diferente.

VivaBem: O sr. tem medo?

Alexandre Kalache: O que me dá medo é o fato de precisarmos dominar duas epidemias: a do vírus e a do pânico. Em Portugal, os supermercados estão sendo desabastecidos, as pessoas estão comprando, acumulando porque têm medo de faltar comida. Se entrarmos em um clima desvairado de medo, o que vai acontecer aos idosos? Eles já vivem isolados. Se passarem a receber menos serviços (refeições em casa, por exemplo), ficarão sem suporte básico.

Ao lavar as mãos, cante “Parabéns a você” duas vezes

VivaBem: Como lidar com isso?

Alexandre Kalache: É claro que a gente precisa redobrar todos os cuidados para evitar transmissão de pessoa a pessoa. Uma boa medida é cantar “Parabéns a você” duas vezes, enquanto lavamos as mãos. Ensaboar bem, para cima e para baixo, o pulso e só depois enxaguar. Do contrário, não adianta. Esse é o tempo necessário. As pessoas precisam fazer o máximo para evitar a infecção dos mais vulneráveis. Os que têm diabetes, asma, algum outro problema respiratório e os mais idosos. Isso tem de ser feito de forma sensível. Sem apavorar a população. As pessoas precisam sentir que têm suporte, inclusive emocional.

VivaBem: No Brasil, os idosos envelhecem mal. O isolamento social sempre foi um problema. Agora é o momento de recomendar que eles fiquem em casa?

Alexandre Kalache: Acho que sim, infelizmente. Ir a um centro de convivência para jogar dama ou encontrar pessoas não é recomendável. Neste momento os idosos vão se proteger mais se entrarem em uma relativa quarentena, procurando se expor menos ao contágio. Agora está na hora de ver Faustão. Para não se sentir sozinho, converse com os amigos e com a família por Skype, WhatsApp etc. Sempre combati o isolamento. Digo que não adianta ter mais de 3 mil amigos no Facebook e ninguém para segurar a mão. Agora não é hora de segurar a mão. Está na hora de falar com os 3 mil amigos pelo Face.

Corpinho sarado não garante boa resposta imunológica

VivaBem: O que torna o idoso mais vulnerável?

Alexandre Kalache: Se comparar uma pessoa de 40 anos com diabetes e um indivíduo de 80 anos com a mesma doença, ele terá mais complicações porque tem uma resposta imunológica mais deficiente e vagarosa. Se ambos forem saudáveis, o idoso também terá uma resposta imunológica menos eficiente. O nome disso é envelhecimento. Conforme envelhecemos, perdemos a capacidade de responder da mesma forma que um adulto jovem. A nossa resiliência a fatores externos vai diminuindo. Vemos um cara idoso, mas sarado. Parece ótimo. Aquela senhora que tem um corpinho de 40 anos, mas isso é aparência.

VivaBem: Do ponto de vista fisiológico, eles não são mais saudáveis?

Alexandre Kalache: Eles podem ser realmente mais saudáveis. Mas na hora em que pegam um vírus, a resposta imunológica é mais baixa. Quanto mais cedo a pessoa se prepara para a velhice, melhor. Os idosos não devem deixar de manter hábitos saudáveis. Não fumar, não beber, fazer atividade física. Não está na hora de fazer caminhada em grupo, mas podem fazer exercícios em casa.

VivaBem: O que pode acontecer quando os idosos, os mais vulneráveis, começarem a procurar o sistema de saúde?

Alexandre Kalache: A maioria dos idosos (83%) depende do Sistema Único de Saúde (SUS). Na China, a mortalidade dos idosos chega a quase 20%. Entre os jovens, ela não chega a 1%. Mesmo assim, isso acontece mais entre jovens que já tinham comorbidades (asma ou outro problema respiratório ou imunossuprimidos).

Hospitais sem sabão

VivaBem: O pânico em relação ao vírus é injustificado?

Alexandre Kalache. Não há justificativa para o pânico. Temos que agir com a cabeça fria, com base em evidências científicas e com bom senso. Temos um problema potencial no Brasil, um país que já tem um sistema de saúde muito mal preparado e que sofre com falta de investimentos. Estamos falando de coisas dramáticas. Na semana do Carnaval, mais de 2 mil profissionais da atenção primária à saúde foram demitidos no município do Rio de Janeiro. Há comunidades muito pobres que, de repente, ficaram sem o staff da unidade de medicina de família.

VivaBem: O que a crise no Rio de Janeiro demonstra em relação à saúde brasileira?

Alexandre Kalache: O Rio de Janeiro é um tambor do Brasil. O que acontece lá deve ter repercussão porque a cidade é emblemática. Os enfermeiros não tinham sabão para lavar as mãos antes de passar de um paciente a outro. Isso é regra básica. Não precisa ter coronavírus para saber que sabão é indispensável. Os profissionais de saúde precisam ter um mínimo de condições para que possam se proteger e não transmitir uma infecção de um paciente a outro. Na China, os médicos estão sendo menos afetados pela infecção do que o pessoal da enfermagem. É esse pessoal que lida com secreções, troca fraldas e lida com tudo o que foi contaminado pelo paciente. Temos que proteger o nosso pessoal de saúde em um momento em que o nosso sistema de saúde já está sucateado.

VivaBem: Como a população brasileira e os próprios profissionais de saúde não vão se assustar se eles conhecem a realidade do nosso sistema de saúde?

Alexandre Kalache: Precisamos ter o bom senso de fazer o possível para nos proteger individualmente. Não está na hora de viajar, não está na hora de ir ao teatro, está na hora de evitar aglomerações. Temos também que ter o bom senso de não espalhar uma infecção grave como essa para pessoas mais suscetíveis. Quem tiver algum sintoma respiratório, resfriado ou uma pontinha de febre deve ficar em quarentena por conta própria. Provavelmente não acontecerá nada de grave para essa pessoa, mas ela pode transmitir o vírus às pessoas suscetíveis.

VivaBem: Haverá respiradores, UTI e pessoal para dar conta de mais essa demanda provocada pelo coronavírus?

Alexandre Kalache: Em um país onde já não temos os centros de tratamento intensivos necessários na rede pública para as pessoas que precisam, o coronavírus vai demonstrar como fomos desleixados com o sistema de saúde do Brasil. Como deixamos que ele chegasse ao ponto em que está? Os gastos sociais foram congelados. Isso tem um preço. Passada essa crise, com coronavírus ou sem ele, é preciso investir para reverter a situação calamitosa da nossa saúde.

“Promiscuidade habitacional”

VivaBem: É viável recomendar que os brasileiros evitem aglomerações?

Alexandre Kalache: Isso me preocupa. Nas favelas, as pessoas vivem amontoadas. É uma promiscuidade habitacional. Não só porque as pessoas vivem no mesmo cômodo, mas porque a distância entre uma casa e outra é de um metro. A favela da Rocinha tem hoje a maior incidência de tuberculose da América Latina. Temos hanseníase, doenças que são transmitidas porque as pessoas vivem umas em cima das outras. Lembro da minha avó. Ela dizia: “Em casa em que não entra o sol, entra o médico”.

VivaBem: A resposta do Ministério da Saúde e de outras autoridades de saúde no Brasil frente a essa crise é adequada?

Alexandre Kalache: A resposta a essa situação aguda do coronavírus tem sido adequada. Inadequada foi a falta de atenção ao SUS. Ele foi esvaziado. Nós não o valorizamos e nem o reforçamos. As pessoas acham que dengue é besteira, doença de pobre. Não há muros suficientemente altos para proteger os ricos do Morumbi porque ao lado está a favela de Paraisópolis. Não há possibilidade de frequentar praias com águas limpas se 50% da população do Rio não tem esgoto. O que está faltando é o que faltou. Não temos estrutura sanitária (abastecimento de água e esgoto). Como pode a população do Rio receber água contaminada? A crise do coronavírus vai expor tudo isso.

Os vícios do sistema

VivaBem: Como idoso, o sr. tem receio de pegar o vírus na Europa?

Alexandre Kalache: Tenho. Estou evitando aglomerações. Cheguei há três dias, mas se fosse hoje eu não teria viajado. Vim porque tinha compromissos profissionais, mas vários foram cancelados.

VivaBem: Caso o sr. tivesse sido infectado, onde teria mais chance de conseguir um bom atendimento? Na Europa ou no Brasil?

Alexandre Kalache: Tenho amigos em Portugal, mas não tenho capital social. Se estivesse infectado, gostaria de estar perto da minha família. Até, se fosse o caso, para poder dizer a eles que foi uma longa vida e bem vivida. Do ponto de vista de atendimento de saúde, preferiria estar no Brasil porque lá sou da elite, sou um privilegiado. Tenho os conhecidos, sei navegar o sistema, tenho um seguro de saúde muito bom. Na Europa, eu seria um a mais. Se eu precisasse ser entubado, a minha chance de ser considerado um caso prioritário seria menor. O que equivale, na prática, a furar a fila. É triste dizer, mas a nossa classe social está acostumada a ter privilégios e a furar a fila. Se eu e um pobre com o mesmo grau de comprometimento de saúde fôssemos atendidos em um hospital público no Brasil, haveria um viés indicando que eu deveria receber a vaga antes dele. São os vícios do nosso sistema.

 

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