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Cristiane Segatto

Covid-19 em crianças: com Down, bebê de 5 meses precisou de internação

Cristiane Segatto

13/05/2020 04h00

Foto: Arquivo pessoal

Há três semanas, a auxiliar de limpeza Josiane Dias dos Santos, 42 anos, notou que o filho parecia cansado. O bebê Carlos Rafael Dias, de 5 meses, ficava ofegante quando mamava ou se movimentava.

Josiane percebeu que ele não estava bem, mas imaginou que o problema estivesse relacionado à fragilidade natural do filho. Com Síndrome de Down, Carlos sofre de cardiopatia desde o nascimento.

A mãe não perdeu tempo. Saiu da comunidade em que vive, no Jardim Vila Galvão, em Guarulhos, e levou o bebê ao Instituto da Criança, no Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde Carlos nasceu e é acompanhado.

A hipótese diagnóstica levantada pelos médicos foi confirmada pelo exame genético: o bebê havia sido infectado pelo novo coronavírus. Embora os casos de covid-19 não sejam tão frequentes em crianças, eles existem e podem se agravar.

"É um erro pensar que criança não pega a doença ou que sempre se recupera facilmente", diz o pediatra Werther Brunow de Carvalho, professor de terapia intensiva e neonatologia do Instituto da Criança da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). "A maioria apresenta quadros leves, mas casos de extrema gravidade existem", diz ele.

O desespero

Quando soube que o filho seria transferido para a ala dos pacientes de covid-19, Josiane se desesperou. "Achei que meu bebê ficaria no meio dos adultos e acabaria morrendo", diz ela. "Ficava imaginando que meu filho ia ficar preso num saco e ser enterrado, sem que me deixassem ver", afirma.

Felizmente, a realidade foi outra. O bebê precisou de internação, mas não foi afastado da mãe. Josiane pôde amamentá-lo e acompanhar o tratamento.

"Todo o tempo a equipe cuidou de mim e do meu filho. Deus e o pessoal do hospital foram maravilhosos comigo. Olho meu bebê hoje e nem parece que ele teve essa doença", diz ela.

Sem um comprometimento grave dos pulmões, Carlos voltou para casa depois de nove dias no hospital. Ele é uma das 28 crianças que receberam o diagnóstico de covid-19 na instituição. Três morreram. Oito continuam internadas (em enfermaria ou UTI). As demais estão em acompanhamento domiciliar.

A infecção

A família não sabe como o bebê foi infectado pelo novo coronavírus. "Como em casa todo mundo tem rinite e sinusite, pode ser que um de nós tenha contraído o vírus e nem percebeu", diz ela.

Além do bebê, Josiane divide a casa com outros dois filhos (um de 14 anos e outra de 21) e um neto. Por enquanto, ela fica isolada com o bebê em um quarto e sempre usa máscara.

"Essa doença dá muito medo. Nem pude abraçar os meus filhos no Dia das Mães. A gente não sabe quanto tempo ela fica na pessoa, nem como vai se manifestar", diz Josiane.

Incertezas da medicina

Assim como as famílias, os médicos também têm dúvidas. "Essa é uma doença desafiadora. A cada semana surgem fatos novos que podem dificultar o diagnóstico e o tratamento", diz o pediatra Carvalho.

Em parceria com pesquisadores da USP de Ribeirão Preto, ele revisou a literatura científica sobre mais de 2 mil casos de crianças atendidas na China e na França e criou um protocolo brasileiro para ajudar médicos a fazer diagnósticos e a cuidar da melhor maneira possível desses pequenos pacientes.

O trabalho foi publicado na Clinics, a revista científica do Hospital das Clínicas, e está disponível aqui.

"Como a experiência mundial a respeito de covid-19 em pacientes pediátricos é muito menor do que em adultos, esse protocolo pode ajudar a melhorar a assistência e a pesquisa no Brasil", afirma. "Essa doença está demonstrando que a medicina precisa de humildade. É preciso estudar, sem prepotência", diz ele.

Segundo Carvalho, as incertezas começam na apresentação clínica. Embora os sintomas respiratórios sejam os mais frequentes, podem ocorrer também manifestações gastrointestinais (vômitos, diarréia etc).

Além disso, nas últimas semanas surgiram registros de sintomas semelhantes aos da Síndrome de Kawasaki, uma inflamação de todo o endotélio do organismo. A síndrome é grave porque altera, principalmente, as artérias do coração. Por enquanto, nenhum caso desse tipo foi registrado na instituição.

Como tratar

"Como tratar é a principal dúvida dos pediatras que atendem crianças com covid-19", diz Carvalho. Medicações que têm determinado efeito em adulto podem ter outro em criança. As doses não são conhecidas. É tudo mais arriscado.

"Não vamos usar cloroquina em crianças", diz o médico. Segundo ele, nos casos muito graves é possível pensar em hidroxicloroquina – menos tóxica. Ainda assim, as doses devem ser calculadas em miligramas por quilo.

A obesidade da população pediátrica brasileira é um complicador. "Ocorrem muitos erros de dosagem por causa disso", diz ele. Há crianças de 7 anos que pesam 50 kg, quando o peso ideal seria em torno de 24 kg. "Imagine se alguém receitar hidroxicloroquina, que pode provocar morte súbita, multiplicando por 50 em vez de 24? Isso pode matar a criança"

A hidroxicloroquina foi incluída no protocolo elaborado por Carvalho, mas o uso deve estar reservado para situações extremas, desde que os pais assinem um termo de consentimento.

Os casos leves

A maioria dos 28 pacientes atendidos no Instituto da Criança teve uma boa recuperação. Nos casos leves, os sintomas foram amenizados com antitérmicos e inalação, sem que houvesse necessidade de qualquer tratamento específico.

Nos casos classificados como moderados, os pacientes foram internados em enfermaria. Apenas os graves ou críticos foram para a UTI pediátrica. "Na China, intubavam crianças e adultos muito mais precocemente. O aprendizado sobre os casos ocorridos no Exterior nos permite aguardar um pouco mais antes de colocar crianças em aparelhos de ventilação mecânica", diz Carvalho.

Uma dose de bom senso

Enquanto não surge um medicamento específico contra a covid-19 ou uma vacina, o melhor que os pais podem fazer é imunizar os filhos contra a gripe. Isso ajuda os médicos a produzir diagnósticos corretos.

Bebês acima de 6 meses podem tomar a vacina contra a gripe. Quando recebem uma criança com sintomas respiratórios que foi vacinada contra a gripe, os pediatras podem desconfiar de outros vírus, entre eles o corona.

A crise sanitária que estamos vivendo exige bom senso dos pais e respeito aos profissionais de saúde. "As pessoas sempre esperam que a ciência e a medicina tenham a cura", diz Carvalho.

"Não adianta levantar hipóteses ou suposições de cura (como a enorme expectativa criada em torno da cloroquina), se elas não forem comprovadas em bases seguras", afirma o professor. "Países que encararam a pandemia com realidade e humildade se saíram melhor".

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.