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Cristiane Segatto

Covid-19, conflito em casa, desemprego: como a terapia online pode ajudar

Cristiane Segatto

06/05/2020 04h00

A psicóloga Dorli Kamkhagi, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo, coordena um grupo que oferece atendimento gratuito e online durante a pandemia (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

100 mil infectados. 7 mil mortes. E daí que o próximo pode ser você, eu ou nós dois.

Como lidar com essa perspectiva? Desde o início da pandemia de covid-19, o medo só não existe na cabeça de quem nega os fatos ou vive fora da realidade.

Talvez o novo coronavírus já esteja nas nossas mãos. Ou à espera de uma carona na próxima inspiração profunda. É paradoxal: o fluxo que revigora pode ser, também, o empurrãozinho aguardado pelo vírus para alcançar os pulmões.

No cenário mais inusitado de nossas vidas, o mundo ficou estranhamente ameaçador. Para todos os seres pensantes, sem distinção. Em maior ou menor grau, a falta de controle traz ansiedade e sofrimento. O que fazer com essa dor?

Pedir ajuda é uma escolha inteligente. Nos últimos dois meses, milhares de pessoas têm buscado apoio psicológico online para lidar com o confinamento e outras limitações impostas pela pandemia.

Do lado de lá da tela, há alguém que sabe ouvir

Uma das iniciativas que oferecem atendimento gratuito foi criada pelo Grupo de Envelhecimento do Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo.

Coordenado pelas psicólogas Dorli Kamkhagi e Ana Carolina Costa, um grupo de psicoterapeutas oferece ajuda psicológica breve (em algumas sessões on-line de 20 minutos) para pessoas acima de 50 anos.

No primeiro mês, 54 pessoas foram atendidas (80% são mulheres). As principais queixas são tristeza, medo, ansiedade e falta de perspectiva em relação ao futuro. Como há pessoas na fila de espera, a equipe planeja criar um grupo de atendimento presencial pós-pandemia.

"As pessoas estão pedindo socorro. Enquanto o mundo exterior ficou menor, o universo interior está adoecido", diz Dorli. "Elas estão angustiadas, com raiva e sensação de impotência. Bebem mais, tomam ansiolítico e dormem. E, quando acordam, estão sem rumo".

Como não podem explodir, muitos implodem. Em momentos assim, contar com apoio psicológico (ainda que em sessões breves) pode ser valioso.

"A escuta terapêutica amplia a representação do que cada um tem de si mesmo. A pessoa se percebe em um outro espaço. Ela sabe que é alguém e estabelece pontes para o futuro", afirma Dorli.

A difícil convivência em pequenos espaços

O confinamento da família em pequenos espaços tem provocado desentendimentos ou graves conflitos. De uma hora para outra, todo mundo foi obrigado a passar o dia inteiro junto, disputando metros quadrados.

Se um quer trabalhar, outro quer ouvir música sem fones de ouvido. Um terceiro tem aula online, mas o quarto quer ver TV. O quinto resolve fazer ginástica no quintal ou na varanda, mas alguém foi mais rápido e abriu o varal de chão no mesmo espaço. Se não aproveitar o sol que, já, já, vai embora, a roupa não seca. E haja bom senso e capacidade de negociação…

"É interessante observar como algumas pessoas conseguem se reinventar mesmo na crise", diz Dorli. "Parece que a parada obrigatória provocada pela pandemia gerou um movimento interno" (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

"Será que eu posso existir?"

Se não houver alguma flexibilidade, os conflitos podem ganhar proporções além do razoável. "Relações de casal que já não vinham bem tendem a piorar neste momento", diz Dorli.

Não só as de casal. Uma paciente que buscou a terapia relatou que queria ajudar nas tarefas de casa, mas sentia que estava incomodando. Se entrava na cozinha, a filha reclamava porque o namorado já estava cozinhando.

Quando isso se repete em diversas situações, chega uma hora em que a pessoa se pergunta: será que eu posso existir?

"O que podemos sugerir em situações assim é que as pessoas tentem fazer alguns acordos. Combinar horários ou dias em que cada um quer usar a cozinha, por exemplo", diz Dorli. "Muitas vezes esses conflitos causam dor porque já existem outras dores".

A psicóloga observa que algumas pessoas já estavam fechadas para a vida. "Elas sabiam que podiam fazer coisas antes da pandemia, mas não estavam fazendo. Tinham um desejo, mas não estavam cuidando dele. Agora querem fazer e não podem", afirma.

Quando a crise desperta um movimento

Como tantos brasileiros, muitas das pessoas atendidas estavam tentando voltar ao trabalho neste ano. Tinham esperança e, de repente, a pandemia interrompeu planos de dias melhores.

"Vi muita gente paralisada por essa situação tão adversa, mas é interessante observar como algumas pessoas conseguem se reinventar mesmo na crise. Nesses casos, parece que a parada física forçada gerou um movimento interno. Um movimento de vida", diz Dorli.

Há quem pense em escrever, fazer bolos, vender marmitas. "Muita gente tem percebido que o pouco pode ser muito. Não querem parar, acham que é possível fazer coisas e pensam que não vão morrer de fome".

A psicóloga acredita que a pandemia levará muita gente a repensar várias coisas e a encontrar o seu melhor. "Não vejo um mundo cor-de-rosa; vejo em tons de azul, verde, preto. Tenho meus momentos de depressão, mas tento lutar", afirma Dorli.

Não existe mais a situação ideal. Existe a situação possível. E, dentro do possível, podemos muito.

 

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.