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Cristiane Segatto

Proteger vida deveria estar acima da política, diz superintendente do HCor

Cristiane Segatto

22/04/2020 04h00

Anderson Lira/Frame Photo/Estadão Conteúdo

Na semana em que o governo de São Paulo anuncia a reabertura gradual da economia, a partir de 11 de maio, o blog conversou com o economista Fernando Torelly. Gaúcho e atual superintendente corporativo do Hospital do Coração (HCor), em São Paulo, Torelly é um profundo conhecedor do sistema de saúde suplementar (trabalhou nos hospitais Moinhos de Vento e Sírio-Libanês e na operadora Unimed) e de parcerias com o Sistema Único de Saúde (SUS).

VivaBem: Qual foi o impacto do isolamento social nas instituições de saúde?

Fernando Torelly: No Hospital do Coração (HCor), recebemos sete pacientes de covid-19 em meados de março. Um mês depois, havíamos chegado a 79 internados. Nas últimas semanas, tivemos uma queda. Hoje temos 63 pacientes internados. Graças ao isolamento social, iniciamos uma primeira redução no número de atendimentos.

VivaBem: O que pode acontecer quando a população voltar às ruas?

Fernando Torelly: O volume de atendimentos deve voltar a crescer, mas não acredito em um novo pico de casos na saúde suplementar. Se o fim do isolamento acontecer de forma gradual, planejada e organizada, como recomendam os técnicos da saúde, vamos conseguir fazer o achatamento da curva na saúde suplementar. Ainda assim, vamos ter que lidar com casos graves de covid-19 por, pelo menos, mais seis meses.

VivaBem: E no SUS (Sistema Único de Saúde)? 

Fernado Torelly: No SUS, a situação é extremamente difícil em cidades como Manaus, Fortaleza e Rio de Janeiro. Basta lembrar que os hospitais do Rio viviam uma grave crise antes da pandemia. Em São Paulo, há hospitais públicos grandes e importantes com 90% e até 100% dos leitos de UTI ocupados. Isso é uma grande preocupação.

Troca de ministro

VivaBem: Qual é a sua expectativa em relação ao novo ministro da saúde?

Fernando Torelly: O grande desafio do ministro Nelson Teich é não mais olhar o Brasil como um único país, mas planejar regiões, considerando o tamanho do surto e a infraestrutura de saúde. Algumas cidades brasileiras estão próximas de atingir o colapso. A questão agora é saber como o poder público vai se organizar para apoiar essas cidades. Entendo que o novo ministro é uma pessoa altamente qualificada. É médico e tem formação em gestão em altíssimo nível.

VivaBem: Ele terá condições de valorizar a pauta técnica?

Fernando Torelly: Ele tem todas as condições de dar continuidade ao trabalho que foi feito até agora e de organizar o equilíbrio entre saúde economia. Espero que ele tenha condições de ficar na pauta técnica, sem entrar na discussão política acirrada. Tenho certeza de que o setor privado vai apoiá-lo para que consiga ter sucesso. Nós, profissionais de saúde que convivemos com os doentes, não nos preocupamos em saber se ele é de direita ou de esquerda. Ele tem que ser o ministro da saúde do Estado brasileiro – e não do governo que hoje está no poder.

VivaBem: Qual é a sua avaliação sobre o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta?

Fernando Torelly: Penso que ele teve um posicionamento muito importante. Se o isolamento social não tivesse ocorrido da maneira como ocorreu, hoje poderíamos estar vivendo um pico acelerado de casos tanto no sistema público quanto no privado. Foi um ministro que soube se comunicar com a sociedade. Antes dele, meus filhos nem sabiam o que faz o Ministério da Saúde. Agora ficaram tristes com a saída do ministro.

O economista Fernando Torelly, do HCor: "A grande doação que os empresários de todos os setores da economia podem fazer neste momento é manter os empregos" (Foto: Divulgação)

VivaBem: Os profissionais de saúde estão com paciência para tantos embates políticos?

Fernando Torelly: Quem passa o dia nos hospitais, atendendo pacientes ou trabalhando para que as instituições funcionem, não têm condições emocionais de chegar em casa, ligar a TV, e ver os políticos brigando. Hoje muita gente não quer discutir política. Quer apenas discutir a proteção à saúde. Espero que sejam mantidas as medidas de isolamento social e, se houver abertura, que seja gradual, planejada e bem orientada. Que ao sair de casa (quando for possível sair) todo mundo saia diferente. Saia com uma obsessão pela proteção, pela higiene de mãos, pela máscara, pelo álcool gel.

VivaBem: O que pode acontecer se todo mundo voltar às ruas sem proteção?

Fernando Torelly: Podemos ter um novo pico que vai exigir restrição social e impactar a economia novamente. Para isso, a comunicação do governo é muito importante. O exemplo do governo é muito importante. Os brasileiros precisam entender que a pandemia é grave. Em vez de brigar, os governos, o presidente, os políticos têm que passar uma mensagem única para a sociedade. Uma mensagem de proteção. Precisamos de uma pauta dedicada à saúde. Para isso, está faltando grandeza.

Fila única de leitos

VivaBem: Qual é a sua opinião sobre a proposta de criação de uma fila única de leitos públicos e privados?

Fernando Torelly: Há situações diferentes em cidades e regiões. Imaginar que a área pública conseguirá construir, de uma hora para a outra, um sistema de regulação de uma fila única no Brasil, é arriscado. Não vejo isso como uma solução eficiente. Acredito muito mais na criação de um conselho que reúna o público e o privado para que, juntos, criem estratégias de enfrentamento.

VivaBem: De que forma a área privada deve apoiar o SUS?

Fernando Torelly: Hoje vamos reduzir seis dos nossos leitos de UTI para emprestar os equipamentos ao Hospital das Clínicas, que está com quase 85% de ocupação. À medida que a área pública precisar de mais apoio, não tenho dúvida de que os hospitais privados vão contribuir. Inclusive com a disponibilização de leitos para atender pacientes graves do SUS. São Paulo não está à beira do colapso porque ainda tem recursos públicos e privados para fazer esse enfrentamento. Em um município onde isso não estiver acontecendo, talvez a necessidade seja diferente. Cidades que já viviam uma grave crise de saúde pública antes da pandemia viverão um cenário muito pior. Não há como fazer um sistema de saúde ineficiente se tornar eficiente no meio de uma pandemia. Todos os dias fazemos uma videoconferência com mais de 140 instituições públicas para apoiá-las no enfrentamento da crise. Essa é uma das nossas ações dentro do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do SUS (PROADI-SUS).

VivaBem: O HCor será remunerado pelo empréstimo desses respiradores?

Fernando Torelly: Não haverá remuneração. Essa é uma discussão que não estamos fazendo. A receita do HCor deve cair 50% em abril. Tivemos um aumento de custo (contratamos 100 funcionários, alugamos equipamentos etc) e uma diminuição no número de atendimentos. Houve uma redução de 80% dos exames de medicina diagnóstica e das cirurgias eletivas. Criamos unidades para atender exclusivamente os pacientes de covid-19. Designamos 124 leitos para isso, mas apenas metade está ocupada. Temos 36 leitos de UTI só para covid-19, com taxa de ocupação de 50%. Quando emprestamos equipamentos ao Hospital das Clínicas, não estamos olhando o nosso resultado econômico. Vencer essa pandemia não é uma questão do público ou do privado. É uma luta de toda a sociedade.

A lição da pandemia

VivaBem: Com medo de se infectar, os pacientes deixaram de ir aos pronto-socorros?

Fernando Torelly: Antes da pandemia, atendíamos 170 pessoas por dia no pronto-socorro. Hoje apenas 50 nos procuram. Elas precisam saber que criamos fluxos totalmente separados para os pacientes de covid-19. Não dá para as pessoas ficarem em casa e ter o agravamento de seu problema de saúde porque estão com medo da covid-19. Continuamos atendendo infarto, AVC, fazendo cirurgias cardíacas. Os pacientes devem discutir com seus médicos se é hora ou não de fazer um procedimento.

VivaBem: Como os empresários de todos os setores da economia deveriam agir?

Fernando Torelly: A grande doação que os empresários podem fazer neste momento é manter os empregos. Só assim a economia poderá voltar a certa normalidade depois da pandemia. A indústria, o comércio, a iniciativa privada tem que fazer esse sacrifício. Ter um resultado péssimo neste ano, não distribuir dividendos porque essa é uma crise sem precedentes, mas manter o emprego dos trabalhadores. Só assim poderemos começar a retomada gradual da economia, daqui a um mês, sem a tragédia social do desemprego.

VivaBem: Qual é a grande lição da pandemia?

Fernando Torelly: A saúde conseguiu parar a economia do mundo. Essa tem que ser uma reflexão importante para os governos do mundo inteiro. Não dá para ter uma emergência sempre superlotada. Ela precisa ter um nível de ociosidade para que possa atender bem, caso ocorra uma catástrofe ou uma pandemia. A saúde não pode viver sempre no limite. É uma vergonha o Brasil não ter indústria para fornecer álcool e máscara cirúrgica. Vamos ter que montar uma indústria estratégica e ver de que forma será possível apoiar as instituições de saúde para que elas possam viver durante e após a pandemia. Não podemos deixar o setor de saúde fazer esse enfrentamento e depois voltar à situação de subfinanciamento, principalmente na área pública. Não adianta aplaudir os trabalhadores nas janelas e depois aceitar que eles sejam demitidos.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.