Topo

Cristiane Segatto

Covid-19: mães contam como tentam proteger os filhos mais vulneráveis

Cristiane Segatto

15/04/2020 04h00

A fotógrafa Mara Garcia e o filho Pedro, de 22 anos. Com paralisia cerebral, ele respira por aparelho e vive em internação domiciliar. O desafio agora é protegê-lo do coronavírus (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Cenas como a da foto estão adiadas, até segunda ordem, na casa da fotógrafa Mara Garcia. Se a pandemia de coronavírus exige distanciamento físico, ela precisou encontrar outra forma de interagir com o filho. Por amor, ela obedece às orientações das autoridades de saúde.

No mundo de Pedro, que sofre de paralisia cerebral, o contato sempre abriu as portas da comunicação. Quando recebe um abraço, um beijo, um afago, ele sorri. Por meio desse código inventado pela convivência, a família deduz se o rapaz de 22 anos está confortável, tranquilo ou, quem sabe, até feliz.

Pedro não enxerga, não fala e não anda. Nasceu com uma síndrome rara, chamada de Sturge-Weber, que causa calcificação cerebral e convulsões de difícil controle. Depende de respirador e vive em home care há 21 anos.

"Não beijo mais meu filho no rosto. Agora, só nas mãos. Ainda assim, ele se alegra", diz Mara.

Se a covid-19 tem provocado muitas baixas entre os profissionais de saúde, como Mara convive com o risco permanente de infecção em uma casa onde há revezamento de equipes de enfermagem? Como lida com o medo de contrair a doença e não poder cuidar do filho?

Mara e outras duas mães, cujas histórias foram publicadas no primeiro ano deste blog, contam como tentam proteger os filhos mais vulneráveis à infecção pelo novo coronavírus.

>> Conheça a história de Mara e Pedro

Calma, vai passar

"Vivo um luto anunciado a cada momento que imagino o coronavírus batendo à minha porta. Aí eu penso: 'Calma, vai passar'.

Pedro está muito bem. Sem infecção, risonho como sempre, com as mesmas auxiliares de enfermagem. A única mesmice que não me dá tédio é constância do Pedro.

Adotamos uma série de medidas para evitar que a covid-19 nos alcance:

1) Quatro auxiliares de enfermagem se revezam. Quando chegam, tiram os sapatos e calçam chinelos deixados na porta.

2) Montei uma espécie de vestiário de hospital no quartinho dos fundos. As profissionais trocam de roupa, que eu mesma lavo. Bolsas e mochilas ficam nesse quartinho.

3) Elas desinfetam os celulares e fazem a higiene das mãos antes de subirem para o quarto do Pedro.

4)  Coloquei álcool gel em vários pontos da casa e pedi que as profissionais lavem as mãos mais vezes

5) Optei por não receber visita presencial do enfermeiro coordenador e da médica. Pretendo chamá-los só se houver necessidade

6) Limpo o quarto do Pedro com mais frequência que o habitual. Todos os dias, desinfeto o chão, as superfícies, as maçanetas, o corrimão da escada. Uma vez por semana, limpo as paredes (do teto ao chão), com cloro. Minha casa está com cheiro de piscina

Isolados por amor

Começamos um isolamento voluntário antes mesmo de o governo de São Paulo determinar a quarentena. Vou ao mercado apenas uma vez por semana. Compro tudo o que é necessário.

Não saio nem para ir à padaria. Quando volto para casa, tiro toda a roupa e coloco para lavar. Desinfeto embalagens e tudo o que chega por meio de entregadores.

Meus trabalhos, eventos corporativos que estavam marcados, foram todos cancelados. Estou totalmente dedicada aos cuidados para garantir que Pedro fique bem.

Meu outro filho, Bruno, trabalha em esquema de home office. Se ele sai para ir ao mercado, faz todo o ritual de desinfecção quando volta para casa. Ele disse que eu não me preocupasse por ter ficado sem renda nesse momento difícil.

Bruno trabalha para nos suprir, mas eu tento economizar ao máximo.

'Prefiro você e meu irmão vivos', ele disse.

Eu e Bruno nos isolamos por amor ao Pedro. Tenho me comportado como se eu fosse a paciente de risco. Se eu me contaminar, sei que posso colocar a vida de Pedro em risco.

Não posso blindar meu filho, mas faço o que posso. Não sou onipotente. Sou apenas mãe".

Geovanna com os pais, Parima e Lucilene, durante festa junina em Boa Vista. Em isolamento por causa da covid-19, ela sente falta da escola (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

>> Conheça a história de Lucilene e Geovanna

Em 2017, a menina Geovanna de Queiroz Veras, 8 anos, sofreu graves complicações ao ser infectada pelo vírus chikungunya, transmitido pelo Aedes aegypti. Por causa do mosquito, ela passou três meses na UTI e enfrentou 60 sessões de quimioterapia.

A infecção desencadeou uma hiperativação do sistema imunológico, uma reação que pode ser fatal. Esse histórico exige que a família de Boa Vista, em Roraima, redobre os cuidados para evitar que Geovanna tenha contato com o coronavírus.

A funcionária pública federal Lucilene Coutinho de Queiroz Veras e a filha Geovanna contam como lidam com a ameaça da covid-19:

"Fomos a São Paulo em novembro. Os exames da Geovanna estavam todos bons. O próximo acompanhamento seria em abril. Desistimos de ir porque a médica recomendou que, neste momento, o melhor a fazer seria ficar em Roraima.

A maior inspiração

Estamos preocupados porque não sabemos como o corpo dela reagirá ao vírus. Seguimos as recomendações feitas aos pacientes vulneráveis. Ela deixou de ir à escola no início de março, antes mesmo das aulas serem interrompidas.

Tento não deixar que a energia ruim nos envolva e atenta a tudo o que entra em casa. Limpo tudo o que chega.

Tenho medo, mas também tenho fé. Minha filha diz não acreditar que vai passar por tudo de novo. Diz que o tempo de tratamento em São Paulo já deu a ela a cota de isolamento. Geo é a nossa maior inspiração na vida".

 E Geo, o que pensa disso tudo?

"Fiquei muito triste quando soube que não poderia ir para a escola. Achei que fosse pegadinha. Como assim? Passei 5 meses direto no hospital, sem poder sair. Mas entendo que preciso tomar cuidado.

Pessoas como eu já tiveram que fazer quimioterapia. Não é muito legal. Tem que ficar numa bomba. Às vezes, dá enjôo. Fazer um tratamento longo, ficar longe de sua cidade. Depois de tudo isso ficar vulnerável à covid-19 é muito triste.

Meu pai só sai para comprar comida. Tem que lavar as compras. Lavar todas as embalagens antes de guardar.

E se os meus pais pegarem o coronavírus? Tenho medo. E também tenho medo de repetir de ano.

Quando descobrirem a vacina vai ser muito bom. Todo mundo vai poder viver a vida. Continuar com a vida normal e sem medo.

Estou suportando, mas não aguuuuuuuuento mais. Quero ver todo mundo de volta. Quando a quarentena acabar, vou sair por aí, abraçando todo mundo"

Simone com a irmã Viviane e a mãe Claudete, em São Paulo, no ano passado. Quase dois anos depois do transplante de fígado, a família tenta protegê-la do coronavírus (Foto: Cristiane Segatto/ UOL VivaBem)

>> Conheça a história de Claudete e Simone

Há quase dois anos, Simone Maria Moraes Alves, 43 anos, portadora de Síndrome de Down, sofreu uma grave hepatite autoimune e precisou de um transplante de fígado com urgência. Sem ele, a paciente viveria poucos dias. Horas, talvez.

A história de Simone tornou-se um caso incomum na medicina. Ela foi escolhida como a melhor receptora de um órgão doado, apesar de alguns desafios clínicos e de dúvidas relacionadas à sua capacidade de autocuidado.

A cirurgia salvou a vida de Simone. Como todo transplantado, ela toma imunossupressor para evitar rejeição ao órgão. E, por isso, a família precisa fazer o máximo para evitar que ela seja infectada pelo coronavírus.

A nova rotina

O depoimento da professora Claudete Mutti Moraes Alves, mãe de Simone:

"Depois do transplante, Simone foi melhorando um pouco mais a cada dia. Ela ainda é bastante dependente do meu auxílio por uma série de razões, mas está muito bem.

Antes do coronavírus, íamos ao supermercado e à igreja, fazíamos visitas, passeávamos Estivemos na praia duas ou três vezes. Nossa vidinha estava sossegada. Dormíamos bem, na paz de Deus.

Agora a rotina mudou. Como Simone toma imunossupressor para evitar rejeição ao órgão transplantado, ela está no grupo dos mais vulneráveis. Não só ela. Eu também, por causa da idade. Vou completar 74 anos.

Decidimos que o melhor a fazer seria nos isolarmos em casa, em Bragança Paulista, no interior de São Paulo.

Até quando?

Faz um mês que, praticamente, não saímos de casa. Passamos o dia aqui, com a nossa cachorrinha Elis. As compras chegam por delivery.

A rotina da Simone está bastante prejudicada. Ela não quer fazer uma ginástica comigo. Não quer caminhar pela casa. Aqui até teria um espaço suficiente para a gente dar uma volta pela casa, pegando uma área externa. Ela não quer fazer.

Assim vamos passando os nossos dias. Sou uma pessoa tranquila e de muita fé. Tenho me ocupado bastante em acompanhar a TV católica. Rezo o terço todos os dias, acompanho a missa, penso em Deus e nisso tudo que está acontecendo.

Tenho medo. Não tanto por mim e pela Simone (acho que aqui estamos preservadas), mas pelo que acontece no mundo. O que vai ser depois desse período? Até quando vamos viver esse momento difícil? Rezar faz muito bem".

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.