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Cristiane Segatto

Sem trabalho, anestesistas querem cuidar dos doentes graves do coronavírus

Cristiane Segatto

25/03/2020 04h00

Crédito: iStock

Há poucos dias, o anestesista Enis Donizetti Silva, ex-presidente da Sociedade de Anestesiologista do Estado de São Paulo, armou-se de máscaras de soldador. Comprou óculos e essa espécie de capacete de plástico para distribuir aos colegas.

O objetivo é reforçar a proteção oferecida pelos materiais de segurança que os profissionais já usam no dia a dia.

Embora não substituam as máscaras de alta filtração necessárias para atender casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo coronavírus, os tais capacetes simbolizam o espírito geral dos profissionais de saúde que vão para a linha de frente em tempos de medo e escassez.

Vai faltar muita coisa na batalha pela sobrevivência, mas o foco das atenções tem recaído sobre a insuficiência de respiradores e leitos de UTI para atender os doentes graves. Em entrevista ao blog, Silva faz uma proposta inusitada:

Que tal transformar as salas de cirurgia (agora ociosas) em leitos de UTI e permitir que os anestesistas (agora sem nenhum ou com pouco trabalho) cuidem desses pacientes?

VivaBem: Qual é o impacto atual do coronavírus nos serviços de saúde?

Enis Donizetti Silva: As coisas nem começaram a esquentar. Nos próximos 20 dias haverá um grande crescimento no número de infecções. Imagine o que vai acontecer quando houver uma aceleração da transmissão comunitária nas favelas. Como isolar o doente em cômodos onde vive tanta gente? Podemos esperar uma carnificina.

VivaBem: O sr. atua em três grandes hospitais privados de São Paulo: Sírio-Libanês, Samaritano e Oswaldo Cruz. Qual é a situação?

Enis Donizetti Silva: Os casos de transmissão comunitária que chegam às instituições privadas ainda ocorrem em pequeno número. A maioria dos pacientes contraiu o vírus no Exterior. Gente de classe média alta que pode buscar atendimento no Sírio-Libanês, no Einstein, no HCor etc. Hoje o coronavírus responde por menos de 5% do volume de internação. A expectativa é a de que essa demanda chegue a 70%.

Tensão o tempo inteiro

VivaBem: Os profissionais de saúde estão com medo?

Enis Donizetti Silva: Estamos extremamente preocupados. Parte dos infectados pode transmitir o vírus mesmo sem ter sintomas. Algumas instituições, como o Sírio-Libanês, solicitaram que médicos acima de 65 anos não venham ao hospital nesse período. Entre os profissionais de saúde, há tensão o tempo inteiro. Eles vão para a linha de frente, mas com medo.

VivaBem: Com a suspensão das cirurgias e dos procedimentos eletivos, os anestesistas vão ficar sem trabalho?

Enis Donizetti Silva: Como não são assalariados, eles vão perder grande parte da renda mensal. Os procedimentos eletivos correspondem a 95% do movimento da anestesia. Um hospital privado que fazia 500 endoscopias por dia, de repente, fecha o serviço. E esse é só um exemplo. No meu setor, estamos fazendo um acordo com os anestesistas. Em vez de trabalhar quatro semanas, cada profissional vai trabalhar semana sim, semana não. Com isso, pelo menos vai conseguir receber alguma coisa.

Salas ociosas e pacientes no corredor?

VivaBem: Essa força de trabalho poderia ser aproveitada em outras funções durante a pandemia de coronavírus?

Enis Donizetti Silva: Eles poderiam ajudar a cuidar dos infectados que vão precisar de terapia intensiva. No centro cirúrgico, mais de 20% dos pacientes são de alto risco. O meu aparelho de anestesia é comparável a um ventilador de terapia intensiva. Ele tem os mesmos recursos de ventilação. Em muitos centros cirúrgicos, os aparelhos de anestesia são melhores que alguns ventiladores da UTI. Hoje, se um paciente com grave insuficiência respiratória precisa ser operado, consigo reproduzir no centro cirúrgico a mesma ventilação que ele estava usando na terapia intensiva. Não preciso ser treinado em ventilação mecânica ou monitorização hemodinâmica em paciente de alto risco. Isso já faz parte da minha rotina.

VivaBem: Os anestesistas estão preparados para lidar com os infectados que vão precisar de cuidados intensivos?

Enis Donizetti Silva: Lidar com doentes de alto risco faz parte da minha rotina e de muitos outros colegas. São pacientes com doença vascular crônica, com doença renal crônica, com doença pulmonar crônica, com lesão neurológica, AVC, infectados em situações agudas. Somos uma força de trabalho que não pode ser dispensada. Vai faltar leito nas UTI's e vamos fazer o quê? Colocar o paciente entubado no corredor? Fazer isso em um hospital com 25 salas de cirurgia ociosas será um despropósito.

Milhares de leitos extras

VivaBem: Seria possível isolar os pacientes nas salas de cirurgia?

Elias Donizetti Silva: Se um hospital tem 20 salas de cirurgia, é como se ele tivesse 20 boxes de terapia intensiva isolados entre si. Tem uma sala de recuperação pós-anestésica onde cabem 15 pacientes. Hospitais assim já têm recurso e estrutura montados. Não é preciso comprar aparelho. Não precisa comprar monitor, ventilador. Duvido que a indústria consiga fabricar isso a tempo. Existem mais de 25 mil salas de cirurgia no país. Elas poderiam ser usadas como milhares de leitos extras de UTI.

VivaBem: De tudo o que é feito em uma UTI, que tipo de procedimento não faz parte do dia a dia do anestesista?

Elias Donizetti Silva: A nutrição, por exemplo. Se o paciente fica 10 dias internado em terapia intensiva, ele vai precisar de nutrição. Hoje existem nos hospitais grupos multidisciplinares relacionados à nutrição enteral e parenteral. Não há um time de nutrição dentro da UTI. Existe esse time externo que dá suporte para a semi-intensiva, para a UTI, para os pacientes internados em outras alas. Em vez de ir a cinco lugares, agora esse grupo passaria a ir também ao centro cirúrgico. Pronto! Nada demais.

Como aproveitar essa mão de obra

VivaBem: Os hospitais privados discutem a ideia de colocar esses pacientes nas salas de cirurgia?

Enis Donizetti Silva: Ninguém nos chamou formalmente e disse: "Vamos fazer uma capacitação curta e deixar vocês como uma força auxiliar". Conversei com colegas dos principais hospitais privados de São Paulo e de vários estados. Todos disseram que não foram chamados pelas instituições para discutir isso. Essa atitude não tem nenhum bom senso. Como desprezam essa força de trabalho? Dos cerca de 20 mil anestesistas do país, pelo menos 4 mil têm condições de cuidar desses doentes.

VivaBem: E os outros profissionais de saúde que trabalham nos centros cirúrgicos?

Enis Donizetti Silva: Com a interrupção das cirurgias eletivas, temos ali técnicos de enfermagem, técnicos de engenharia, auxiliares de enfermagem, enfermeiras. É recurso humano que está sendo pago. Não dá para deixar de aproveitar essa mão de obra.

Obstáculos e preconceito  

VivaBem: Por que essa proposta  não foi cogitada nos planos de contingência?

Enis Donizetti Silva: É isso que não entendo. Você sabe que para entrar no centro cirúrgico é preciso trocar de roupa. Acho que muitas das pessoas que estão fazendo os planos de contingência nunca quiseram trocar de roupa para entrar no centro cirúrgico. Por isso, elas nem sabem o que há lá dentro. Quando dizem que vai faltar respirador, eles não entenderam. Estão enxergando obstáculos que não existem.

VivaBem: Os gestores dos hospitais sabem quais são os recursos existentes em um centro cirúrgico. Por que eles não cogitam aproveitar essa força de trabalho?

Enis Donizetti Silva: Acho que existe um pouco de preconceito. Pensam que os anestesistas não estão capacitados para cuidar desses pacientes. E eles estão. Hoje já cuidamos de pacientes com insuficiência respiratória grave, com insuficiência renal aguda, insuficiência renal crônica dialítica e não dialítica etc. Esses doentes são operados de fratura de colo de fêmur, são submetidos a cirurgias abdominais, neurocirurgias, transplantes de fígado, coração, pulmão. E quem manipula as drogas e cuida desses doentes no centro cirúrgico é o anestesista. O nosso conhecimento é muito estruturado. Há outra vantagem: na UTI há dois plantonistas para cuidar de mais de 15 pacientes. No centro cirúrgico, tenho um anestesista para cada sala.

Medicina de guerra

VivaBem: No Exterior, anestesistas podem cuidar de pacientes de terapia intensiva?

Enis Donizetti Silva: Na Europa isso é feito rotineiramente em vários lugares. Nos Estados Unidos, mais de 30% dos anestesistas trabalham na anestesia e na terapia intensiva. No Brasil, não sabemos quantos anestesistas tem o título de especialista em terapia intensiva. Mas acho que neste momento os anestesistas deveriam ser aproveitados nessa função tanto nos hospitais privados quanto nos públicos. Em uma semana, seria possível fazer uma capacitação mínima (com conteúdos sobre nutrição, troca de antibióticos, métodos de proteção etc) para que os anestesistas assumissem essa função durante a crise do coronavírus. Com a liberação do uso de telemedicina pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), os anestesistas que estiverem atendendo esses doentes podem, eventualmente, tirar dúvidas por videoconferência, em tempo real, com os intensivistas.

VivaBem: O sr. é vice-presidente da Fundação para Segurança do Paciente. Será possível seguir as normas de segurança em um momento como este?

Enis Donizetti Silva: Vamos tentar fazer isso o tempo inteiro, mas a chance de acontecer coisas fora do planejado é bem razoável, infelizmente. Em algum momento vai ser medicina de guerra mesmo. Será uma coisa estonteante. Estaremos com doze doentes para cuidar, sem ter a mínima estrutura. Mais uma razão para o Brasil não desprezar essa força de trabalho auxiliar. Ela vai se mostrar necessária.

 

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.