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Cristiane Segatto

Câncer de pênis: os homens que a #laveopinto não salva

Cristiane Segatto

04/03/2020 04h00

Crédito: iStock

Enquanto a #laveopinto bombava nas redes sociais, uma pesquisa brasileira que investigou o perfil dos pacientes de câncer de pênis era publicada em uma das revistas científicas mais prestigiadas do mundo: a Scientific Reports, do grupo Nature.

O que uma coisa tem a ver com a outra? Diretamente, nada. Mas agito no Twitter é sempre oportunidade de aprofundar assuntos que não cabem em 280 caracteres. E de dar voz a quem trabalha sério para derrubar tabus e transformar a realidade.

"Câncer de pênis é coisa do século XVII no mundo desenvolvido. Se o Paraguai acabou com a doença, por que o Brasil não pode?", diz o médico patologista Gyl Eanes Barros Silva, do Hospital Universitário Presidente Dutra, em São Luiz, no Maranhão.

Silva é um dos autores do artigo, publicado há duas semanas, que traz o resultado de entrevistas feitas com 116 pacientes do Maranhão, a região de maior incidência de câncer de pênis no mundo.

Sim, esse é mais um recorde mundial do qual o Brasil deveria se envergonhar. Nos Estados Unidos e na Europa, a incidência de câncer de pênis varia entre 0,1 e 1,0 caso por 100 mil habitantes. No Maranhão, ela é de 6,1 casos por 100 mil habitantes.

A cada quatro casos, um ocorre na capital e três no interior.

"Temos a pior rede de saúde do Brasil. Os pacientes têm dificuldade de se deslocar até São Luiz e de arranjar um lugar para ficar na cidade durante o tratamento", diz Silva. Entre os primeiros sintomas (ferida, secreção) e o início do tratamento, há um enorme intervalo de 18 meses. "Quando eles chegam, o câncer está avançado. A maioria morre".

E antes disso?

Muitos dos pacientes que participaram do estudo tinham lesões avançadas e agressivas. Eram jovens, com filhos pequenos e sem muita noção da realidade que enfrentariam. "A ignorância anestesia", diz Silva. "Muitas vezes chorei ao final dessas entrevistas. Em alguns homens, não vemos mais o pênis; o órgão vira uma massa maligna em forma de couve-flor".

Na maioria dos participantes do estudo (96%), o pênis foi extraído. Os urologistas tentam deixar um coto para que o homem possa continuar urinando em pé. "É uma tentativa de preservar um pouco da dignidade masculina, mas não adianta muito. O paciente fica com vergonha de usar o mictório e procura o sanitário para urinar sentado", diz Silva.

Há outro problema: a retirada dos gânglios linfáticos (linfonodos inguinais) para tentar evitar o avanço do câncer para outras regiões pode provocar um grande inchaço nas pernas, parecido com os casos de elefantíase.

O patologista Gyl Eanes Silva no Laboratório de Imunofluorescência e Microscopia Eletrônica do Hospital Universitário Presidente Dutra, em São Luiz, no Maranhão (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

Acredite se quiser

Um paciente de 42 anos sofreu uma autoamputação do pênis. Ao ouvir esse relato do patologista, fiquei aterrorizada pela ideia de que o homem tivesse extraído o órgão por conta própria. Foi pior. "O pênis caiu sozinho. Ficou solto na cueca", conta Silva.

Duvida? Não publiquei a foto dessa lesão em respeito ao paciente e à sensibilidade dos meus leitores, mas quem quiser vê-la a encontra neste outro artigo publicado por Silva e colegas na revista BMC Urology.  

Bem-vindo ao Brasil como ele é.

Como se proteger

"Lavar o pinto" é fundamental, mas não basta para tirar o país desse triste campeonato mundial. Alô, presidente Bolsonaro, o povo precisa mais do que água e sabão, talquei?

A maioria dos pacientes (66%) tinha fimose (incapacidade de expor a glande do pênis por excesso de pele), um problema que dificulta a higiene e pode ser resolvido com cirurgia. A inflamação crônica produzida pelas bactérias e outros micro-organismos leva a alterações no epitélio que, ao longo do tempo, dão origem ao tumor.

O papilomavírus humano (HPV) é outro fator de risco para o surgimento do câncer de pênis. A infecção pelo HPV foi detectada nas amostras de tumor de 62% dos pacientes.

"No Maranhão, há uma quantidade enorme de mulheres jovens que morrem de câncer do colo do útero, que é quase que exclusivamente causado pelo HPV", diz Silva. "É preciso massificar a vacinação de meninas e meninos e oferecer a cirurgia de fimose, quando necessária", diz Silva.

O que difere o Maranhão

A vice-presidente da Sociedade Brasileira de Patologia, Isabela Werneck da Cunha, uma das autoras do estudo publicado recentemente, tem estudado o câncer de pênis no Brasil todo.

Segundo ela, o que difere o Maranhão é a somatória da alta taxa de infecção pelo HPV e de baixo nível sócio-econômico."Na mesma região, há a potencialização de dois fatores de risco importantes. Isso vira uma mistura muito prejudicial", afirma.

Isabela está envolvida em outro estudo para tentar entender por que o câncer de pênis ocorre em pacientes tão jovens no Brasil. "Na literatura mundial, os pesquisadores relatam casos na faixa dos 60 anos. No Brasil, temos achado em homens de 25 anos. No Maranhão, mais de 20% dos pacientes são homens abaixo de 45 anos", diz.

Ciência para quê?

O patologista Silva nasceu em Presidente Dutra, no interior do Maranhão. Morou 13 anos em São Paulo, fez pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, mas voltou a São Luiz.

"Só vou me sentir completo se o meu trabalho como pesquisador trouxer algum benefício para esse povo sofrido do Maranhão", diz Silva. "Isso aqui é passível de mudança. Achei que iríamos conseguir alguma coisa do governo federal quando o presidente falou sobre câncer de pênis, mas nada aconteceu", afirma.

Que a #laveopinto chegue a quem mais precisa, mas não só ela.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.