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Cristiane Segatto

Cirurgia antes do nascimento: a história rara dos irmãos Pedro e Maria Flor

Cristiane Segatto

26/02/2020 04h00

Lucas e Priscila Grilo com os filhos, Pedro e Maria Flor, depois de participar de uma corrida em Londrina, no ano passado (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

Se uma medalha é o reconhecimento ao esforço acima da média, a família de Lucas, 30, e Priscila Grilo, 39, merece muito mais do que as quatro recebidas em uma corrida de rua em Londrina (PR), no ano passado. Tudo o que eles enfrentaram para chegar até ali (com os filhos vivos e a certeza de terem feito o melhor por eles) não cabe na foto.

As duas crianças, Pedro, 7 anos, e Maria Flor, 4, tiveram mielomeningocele (uma má-formação na coluna mais conhecida como espinha bífida). Embora o problema tenha sido detectado logo no início da gestação de ambos, o acesso ao tratamento não foi o mesmo. Nas brincadeiras dos irmãos, o benefício da intervenção cirúrgica precoce fica evidente.

Pedro só pôde ser operado após o nascimento, logo no primeiro dia de vida. Não consegue se locomover sem a cadeira de rodas ou um andador especial. Maria Flor passou por uma intervenção cirúrgica ainda no útero da mãe. Corre, pula, sacode o corpinho com total autonomia, mas raramente sai de perto do irmão. São diferentes, mas muito companheiros.

"Pedro é o herói da Maria Flor", diz Priscila.

O abraço dos irmãos Pedro e Maria Flor. As cicatrizes nas costas demonstram a diferença entre os procedimentos cirúrgicos de correção da mielomeningocele (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

O defeito

A mielomeningocele é um defeito congênito que acontece no período embrionário. No Brasil, estima-se que ocorra um caso a cada 1.000 nascidos vivos. Oito crianças nascem com o problema, a cada dia, no país.

Como a coluna não se fecha adequadamente, a medula e os nervos do feto ficam expostos à urina e às fezes presentes no líquido amniótico. O objetivo da cirurgia intra-uterina, realizada entre a 19ª e a 26ª semana de gestação, é evitar que esse conteúdo chegue ao cérebro e o danifique.

"As crianças operadas intra-útero têm um prognóstico neurológico melhor do que aquelas operadas depois do nascimento", diz Fábio Peralta, responsável pela unidade de cirurgia fetal do Hospital do Coração (HCor), em São Paulo, onde o problema de Maria Flor foi corrigido.

"A história dela é didática porque conseguimos observar a diferença do desenvolvimento neurológico da menina, em relação ao irmão", diz Peralta. "A cirurgia intra-uterina reduz, de maneira significativa, as complicações ao longo da vida.

Maria Flor e Pedro passeando pelas ruas de Londrina no ano passado. Para aprender a andar, ela se apoiava na cadeira do irmão (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

A descoberta

Na primeira gravidez de Priscila, o casal morava em Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, onde o marido trabalhava como agrônomo. Felizes, à espera de boas notícias durante a primeira ultrassonografia, receberam um choque.  "O médico disse que o nosso filho tinha uma má-formação na coluna e o cerebelo não era visto", conta Priscila. "Ele falou isso, virou as costas e saiu da sala. Ficamos desesperados".

Graças a uma boa indicação, o casal foi acolhido por outro especialista, em Cuiabá. O cerebelo do feto existia e a gravidez prosseguiu. Era preciso viajar 500 km para fazer o acompanhamento na capital, onde Pedro nasceu.

A correção

No primeiro dia de vida, Pedro foi operado para corrigir o problema. No segundo dia, foi preciso colocar uma válvula de hidrocefalia para drenar líquido acumulado no cérebro. O bebê passou 28 dias na UTI. De lá para cá, Pedro enfrentou dez cirurgias.

Enquanto o menino evoluía, os pais não mediam esforços para oferecer possibilidades de desenvolvimento. Lucas abandonou o emprego em uma multinacional no Mato Grosso para que a família pudesse voltar ao Paraná, onde havia mais recursos médicos.

Mudaram de cidade várias vezes, moraram em oito casas diferentes, acumularam dívidas, precisaram de ajuda financeira da família e de amigos, fizeram rifas, venderam o que podiam, mas não se desviaram do foco: o que importava era fazer o melhor por Pedro.

O desespero

Quando o menino tinha 3 anos, Priscila descobriu que estava grávida novamente. No primeiro ultrassom, o médico disse que estava tudo bem. Uma semana depois, ela foi chamada para repetir o exame, sob o pretexto de que a imagem havia sido perdida. Lucas estava trabalhando no Paraguai.

"Peguei meu filho e fui repetir o exame", conta Priscila. "Meu mundo caiu quando o médico disse que eu estava grávida de outro bebê com o mesmo problema."

Quando Lucas soube da notícia, o casal se desesperou. Como iria dar conta de duas crianças cadeirantes e passar por tudo o que havia passado com o Pedro? Havia uma única certeza: abortar não era uma opção.

"Sempre que dou um passo, Deus coloca o chão", diz a mãe.

Os irmãos Maria Flor e Pedro em um dia de palhaçadas: companheiros de todas as horas (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

A esperança

O terreno começou a se firmar quando uma prima conseguiu colocar Priscila em contato com a unidade de cirurgia fetal do Hospital do Coração (HCor), em São Paulo, e ela soube que poderia ser atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Mais de 200 intervenções intra-uterinas foram realizadas na instituição desde 2015. Nos últimos dois anos, o HCor ofereceu 69 cirurgias desse tipo e treinou médicos de outras regiões do país, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (PROADI-SUS), financiado por isenção fiscal.

Maria Flor foi operada na 25ª semana de gestação. Por meio de uma abertura de 2,5 centímetros no útero de Priscila, o problema da menina foi resolvido. A gestação seguiu tranquila. "Ela nasceu de cesárea, com a coluna totalmente fechada, linda, super cicatrizada", afirma Priscila.

Em 48 horas, mãe e filha voltavam para casa.

O horizonte

Segundo o cirurgião Peralta, apenas 20% das crianças com mielomeningocele operadas após o nascimento conseguem andar sem o uso de equipamentos. No caso das operadas intra-útero, o índice varia entre 50% e 75%.

Foi o que aconteceu com Maria Flor. Com dois meses de vida, ela também precisou colocar uma válvula de hidrocefalia. Por volta dos três anos, passou por uma cirurgia na bexiga para evitar infecções urinárias recorrentes. Tem uma discreta fraqueza muscular em uma das perninhas, mas a fisioterapia tem ajudado muito.

Maria Flor começou a andar empurrando a cadeira do irmão. Foi assim que conseguiu se equilibrar e arriscar seus primeiros passos. Pedro se diverte com a sapequice da irmã e, volta e meia, diz:

— Vai, Maria. Sobe no sofá e pula!

No mês passado, Pedro começou a se movimentar com o andador. Maria Flor está sempre ao lado do irmão (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

Depois de várias cirurgias, o menino começou a ganhar um pouco mais de movimento. Recentemente, descobriu que está abrindo e fechando uma das pernas. Priscila comprou um andador e ele tomou gosto por andar.

Maria Flor vibra com os avanços. Quando ele consegue dar alguns passos, a menina corre na frente, volta, abraça o irmão e comemora:

— Parabéns, Pedro! Você está andando. Você está andando.

Os irmãos se completam e sonham em estudar na mesma escola. Priscila tentou fazer a vontade deles, mas não conseguiu. Maria Flor foi aceita na escola particular. Pedro, não. Ele foi matriculado em uma instituição pública, o que dificulta a logística da família.

"O preconceito é uma barreira muito maior do que o problema deles", diz a mãe.

Quantas medalhas essa família merece?

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.