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Cristiane Segatto

Inteligência artificial na medicina: vamos falar sobre desigualdade?

Cristiane Segatto

05/02/2020 04h00

Crédito: iStock

Antes de ouvir qualquer conversa sobre tecnologia, robôs e inteligência artificial (IA) aplicada à saúde, convém percorrer a pé, de ponta a ponta, a Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, em São Paulo.

Fiz isso na semana passada a caminho do Hackmed, evento que reuniu empresários, lideranças médicas, patrocinadores e "startupeiros" de formações diversas interessados em "identificar dores do cliente" e oferecer soluções para os inúmeros problemas da saúde brasileira. Como se diz em turmas como essa, problema é oportunidade.

O empresário Jorge Paulo Lemann fala sobre inovação na saúde durante evento em São Paulo. "Gostaríamos de encontrar algo grande para fazer", disse (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

Observar as pessoas em busca de socorro médico na via que concentra o maior complexo hospitalar do país (Hospital das Clínicas e outras instituições, além da Secretaria Estadual de Saúde) ajuda a manter os pés no chão. E como é importante manter os pés no chão em eventos repletos de entusiastas que, de tão ansiosos por olhar à frente, correm o risco de se esquecer de olhar ao lado.

A saúde como ela é

Passei pelos amputados (vítimas de diabetes sem controle, do cigarro ou de acidentes de trânsito?), pelos alcoólatras, pelos obesos, pelos fumantes, pelas crianças incapacitadas, pelos idosos vivendo a pior das velhices, escorados em familiares moídos emocionalmente. Todos arruinados, desequilibrados, vindos de todos os cantos do Brasil. Sem poder trabalhar e fazer a economia deslanchar.

No meio deles, mais miseráveis (ou empreendedores por necessidade) vendendo comida barata para tentar fazer um troco. O ponto final da jornada é a fila crônica, gigantesca e indigna para retirar remédio na farmácia do prédio dos ambulatórios.

Não tem jeito de fazer o medicamento chegar ao doente sem submetê-lo a esse calvário eterno? Com essa pergunta na cabeça, entrei no centro de convenções a tempo de ouvir o empresário Jorge Paulo Lemann (AB Inbev e 3G Capital), o homem mais rico do Brasil, falar sobre seu interesse de investir na área de saúde.

Inovar na saúde

"Gostaríamos de encontrar algo grande para fazer no setor de saúde e de novas tecnologias", disse Lemann. Uma afirmação que despertou brincadeiras do tipo "como faço para entregar o meu cartão?".

Lemann disse que há muita oportunidade para inovar na saúde, mas o Brasil está atrasado em relação ao mundo. Segundo ele, será difícil o país evoluir enquanto a educação e a igualdade de oportunidade não melhorarem.

"Um país que tem a desigualdade social do Brasil (e olha que não sou de esquerda) é um país onde ter diálogo é muito difícil", disse. "Ninguém confia no outro, ninguém quer conversar com o outro, em vez de ver o que é necessário fazer para o país andar para frente".

Debate sobre inteligência artificial na medicina reuniu médicos e representantes de empresas e do Ministério da Saúde (Foto: Ivan Cruz/Divulgação)

Um problema subestimado

O impacto da inteligência artificial na prática da medicina foi discutido no fórum mais interessante do evento. E, novamente, a desigualdade não pôde ser ignorada.

"Vivemos dois enormes problemas que são subdimensionados na saúde: o primeiro é a exclusão. O segundo é a imprecisão", disse o cirurgião Paulo Chapchap, diretor geral do Hospital Sírio-Libanês.

Segundo ele, a inteligência artificial pode melhorar a eficiência dos serviços e, como consequência, o acesso da população a diagnósticos e tratamentos mais precisos.

Em tese, sim. Na prática, a coisa pode ser diferente, principalmente nos primeiros anos de adoção das novas ferramentas no Sistema Único de Saúde (SUS).

"Infelizmente, estamos nos preocupando muito com tecnologia (IA e outras coisas) e nos esquecendo de treinar as pessoas para olhar os dados. Não é todo mundo que tem condições de analisar um gráfico simples para poder gerar ações em relação a isso" disse Jacson Barros, diretor do DATASUS, do Ministério da Saúde.

"Estamos trabalhando para levar esse conhecimento para a área pública, mas dificilmente vamos conseguir atingir todo mundo. A nossa proposta é usar IA para equilibrar demanda e oferta", disse. "Há um desequilíbrio gigantesco nisso. "É um passo para podermos levar saúde a quem realmente precisa naquele momento"

Mais de 900 pessoas participaram do Hackmed, no Instituto de Radiologia (InRad) da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo (Foto: Ivan Cruz/Divulgação)

Médico ou máquina?   

A adoção da inteligência artificial na medicina tem duas facetas, segundo o médico Paulo Hoff, diretor geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e chefe da oncologia da Rede D'Or São Luiz.

Uma parte da IA funciona como complemento ao trabalho dos médicos. São as ferramentas que melhoram o conhecimento imediato do profissional, a partir de uma busca feita computador.

A outra parte, porém, deve roubar empregos. "A gente pode mascarar, pintar de outra cor, mas uma parte da IA vai substituir o trabalho médico", acredita Hoff. "Isso já acontece e acontecerá cada vez mais, mesmo na área cirúrgica."

Como os médicos devem lidar com isso? "Manter a humanização e o controle humano sobre a máquina será fundamental. Cabe a nós decidir como a IA será adotada na medicina porque esse processo é irreversível", disse Hoff.

Durante o evento, startups que apresentaram soluções para problemas reais da saúde foram premiadas (Foto: Ivan Cruz/Divulgação)

Pode dar errado?

A pergunta lançada pelo cirurgião, professor (e excelente mediador) Fábio Jatene permitiu que os debatedores pontuassem problemas que, em geral, são encobertos pelo entusiasmo excessivo em torno de tudo o que é novo.

"A IA pode dar errado e já está dando errado", disse Chapchap. "É possível ensinar o algoritmo a selecionar com um viés racista, por exemplo".

Segundo ele, o estímulo econômico, sem critérios éticos, pode provocar verdadeiros desastres. "Por isso, a presença humana na auditoria dos resultados de algoritmo é fundamental. Se não participarmos desse desenvolvimento, com dados de alta qualidade, a IA vai acontecer de forma enviezada e prejudicar muita gente", disse.

Com isso, Jatene arrematou: "Todos acham que IA é bárbara, mas, cuidado. Há vieses, há problemas e nós precisamos de uma forma ética e técnica de cuidar muito bem para que isso não ocorra", disse.

Soluções para a vida real

Durante o evento organizado pelo aluno de medicina Cauê Gasparotto Bueno e pelo Instituto de Radiologia (InRad), com o apoio de patrocinadores e outros parceiros, as equipes das startups participaram de uma competição que premiou ideias para solucionar problemas reais da saúde.

Que elas ganhem impulso e possam, de fato, melhorar a vida de quem deveria estar no centro do ecossistema da saúde. O pessoal do lado de fora tem pressa.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.