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Cristiane Segatto

Obcecado por entrar em medicina? OK, mas 2020 é o ano da enfermagem

Cristiane Segatto

08/01/2020 07h30

Crédito: iStock

Se há uma coisa que me corta o coração é ver um estudante obcecado por entrar em medicina. A pobre alma enfrenta anos de cursinho, mergulha num poço sem fundo a cada reprovação no vestibular, pensa em apelar para uma faculdade no Paraguai, se desequilibra, adoece, mas não se interessa em conhecer (só conhecer, sem compromisso) as outras carreiras do universo da saúde.

Sempre que tenho a chance de conversar com um sofredor nessa situação, pergunto por que ele ou ela quer tanto ser aprovado no vestibular de medicina.

  • Para provar que consegue passar na prova?
  • Para deixar a família orgulhosa?
  • Pelo status da profissão, tão tradicional quanto o direito e a engenharia?
  • Para ganhar bastante dinheiro?
  • Para salvar vidas, aliviar o sofrimento, fazer a diferença, transformar histórias ou, quem sabe, até o mundo?

Percebo que, às vezes, eles sequer pararam para pensar nisso. A resposta demora a sair. Outros são diretos: salvar vidas, claro. "É meu sonho desde criança". Essa é a deixa para a minha segunda pergunta:

  • Você já pensou em fazer enfermagem?

A primeira reação é de surpresa. Depois vem aquele olhar de decepção. Parece que estou falando de uma profissão de segunda categoria, um prêmio de consolação, uma ideia inconcebível para quem sempre esteve entre os melhores alunos do ensino médio.

Penso que falta conhecimento, não só deles, mas de todos nós, sobre o novo papel da enfermagem nos sistemas de saúde público e privado. Se hoje a excelência da equipe de enfermagem é um pilar fundamental em qualquer bom serviço de saúde, o protagonismo desses profissionais só vai aumentar nos próximos anos. Quer saber por quê?

Novas habilidades

Esqueça o estereótipo da enfermeira que pede silêncio e se cala diante das ordens dos médicos. Muitos profissionais de enfermagem não param na graduação de 5 anos. Seguem investindo em formação e em especialização. São disputados e, cada vez mais, assumem novos papéis em disciplinas clínicas, como neonatologia, cardiologia, emergência e tantas outras. Assim como os médicos, salvam vidas.

Nos Estados Unidos, quase dois terços dos anestésicos recebidos pelos pacientes são administrados por enfermeiros especializados, segundo reportagem recente da revista The Economist.

Na Grã-Bretanha, eles são autorizados a realizar alguns tipos de cirurgias abdominais, ortopédicas e cardíacos. Em alguns países da África, a enfermagem está sendo treinada para fazer cesarianas de emergência, com resultados comparáveis aos alcançados pelos médicos.

Múltiplas funções

O campo de atuação dos enfermeiros é vasto. Com treinamento adequado, eles desempenham múltiplas funções. São essenciais à beira do leito, nas comissões de infecção hospitalar e até na alta gestão.

Sabe qual é um dos maiores temores dos grandes hospitais privados no Brasil? Perder uma equipe de enfermagem para a concorrência. É mais fácil substituir alguns médicos que ninguém quer perder do que enfermeiros treinados durante anos, de acordo com a cultura e o projeto da instituição. Se a enfermagem é valiosa, ela precisa ser bem remunerada. Nem sempre isso acontece, mas a tendência é de valorização nos próximos anos.

O ano da enfermagem

Para a Organização Mundial da Saúde, 2020 é o ano da enfermagem. Na próxima década, a falta de enfermeiros continuará a ser o maior problema dos sistemas públicos de saúde na maior parte dos países. Se quiser cumprir a meta de garantir acesso universal à saúde, o mundo precisará formar mais 9 milhões de enfermeiras e parteiras até 2030.

A enfermagem desempenha um papel central no tratamento e acompanhamento dos pacientes nos serviços de atenção primária à saúde. Tanto no SUS quanto nos programas criados pelos planos de saúde. Considerando que as operadoras investem cada vez mais em atenção primária, não é difícil prever que haverá disputa por mão de obra, assim como já ocorre com os médicos de família.

Mudanças à vista  

O Ministério da Saúde estuda ampliar os campos de atuação da enfermagem para que esses profissionais possam trabalhar com alguns aspectos clínicos. A adoção de novos protocolos envolve discussões com os conselhos federais de medicina e de enfermagem.

Para além do corporativismo que costuma emergir em polêmicas desse tipo, está uma imensa população que precisa ser atendida por profissionais de saúde bem formados e com capacidade colaborativa.

A medicina continuará a ser fundamental na vida de todos nós. Se você sonha com ela, tudo bem. Se você tem dúvidas ou interesse em saber mais, que tal dar uma chance à enfermagem?

Não tenho a pretensão de mudar a escolha profissional de ninguém. E até me solidarizo com os apaixonados. Paixão é um problema. Ela me levou ao jornalismo e é o que me mantém nele até hoje. Nada contra a paixão, mas é sempre bom abrir a mente e o coração para outras possibilidades.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.