O autismo de Greta: por que começar 2020 ouvindo a melhor voz de 2019
De tão peculiar e energética, a voz de Greta Thunberg se faz ouvir. A fala ligeiramente pedante, quase gritada, soa estranha, mas muito autêntica. Greta parece absolutamente convicta de suas palavras. O tom amplifica a urgência do alerta sobre as mudanças climáticas, levado aos quatro cantos do mundo pela adolescente indicada ao Prêmio Nobel da Paz.
Com tantos sinais de distinção, não demoraria até que ela se tornasse alvo de sucessivos golpes baixos ao longo de 2019. Haters não toleram a diferença. Disseram que Greta parecia um robô, que talvez não fosse gente.
O que os incomoda não é apenas a mensagem obstinada. É também a expressão facial limitada, os gestos irritadiços e outros sinais do autismo de Greta. O que os incomoda é a diferença. Algo que, no caso dela, parece ter se tornado um trunfo.
O superpoder
Para Greta, o que significa ser autista? Em novembro, ela falou sobre isso em um dos programas de TV de maior audiência dos Estados Unidos. Parecia pouco à vontade diante das luzes do estúdio e do alvoroço dos aplausos, mas foi em frente, cumpriu o roteiro dos talk shows e encantou a audiência com a objetividade de sempre.
"Ser diferente é um presente", disse Greta à apresentadora Ellen DeGeneres. "É preciso pensar fora da caixa, principalmente em uma crise como esta. As pessoas que funcionam de forma diferente podem ser uma boa fonte para isso".
Greta recebeu o diagnóstico de Síndrome de Asperger, uma forma de autismo considerada leve. Uma condição que, em outras entrevistas, ela comparou a uma espécie de superpoder, desde que a pessoa possa contar com o apoio da família e o suporte adequado de profissionais de saúde.
Foi o que aconteceu com ela. Logo no início da vida escolar, a menina começou a apresentar dificuldades de interação. Tinha o chamado mutismo seletivo, caracterizado pela recusa em falar em determinados contextos sociais. Aos 11 anos, recebeu o diagnóstico de depressão. Atualmente, Greta convive também com o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e com o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).
O hiperfoco
Nada disso a impediu de iniciar um movimento internacional de estudantes que pede medidas concretas para combater as mudanças climáticas. Greta segue influenciando milhões de pessoas em todo o mundo. Foi eleita, merecidamente, a personalidade do ano pela revista Time.
No Brasil, como em outros países, o exemplo de Greta inspira as comunidades interessadas em discutir o autismo. "Ela é um novo rosto para o transtorno do espectro do autismo (TEA)", afirma Tiago Abreu, criador do Introvertendo, um podcast onde autistas conversam.
Em um dos episódios recentes, Abreu destaca o hiperfoco de Greta, uma das características que costumam ocorrer no TEA. O hiperfoco é a absoluta concentração em uma atividade ou interesse. É o que faz a pessoa se dedicar tanto a uma atividade a ponto de se destacar e de obter muito sucesso nela.
"Ela é um exemplo de que as pessoas dentro do espectro podem chegar longe se utilizarem seu hiperfoco", diz Abreu. "Ele faz com que a Greta não consiga seguir levando a vida dela, como se nada estivesse acontecendo, diante da urgência da crise climática. Para ela, não é possível dissociar as duas coisas. Greta vai seguir batendo na mesma tecla", diz Abreu.
A mensagem
Por que começar 2020 ouvindo a melhor voz de 2019? Por várias razões, mas destaco uma delas: sem ambiente viável, não há saúde. A Organização Mundial da Saúde listou cinco exemplos do impacto das mudanças climáticas sobre as condições de vida:
1) As mudanças climáticas afetam os determinantes sociais e ambientais da saúde – ar limpo, água potável, alimentos suficientes e abrigo seguro.
2) Entre 2030 e 2050, estima-se que as mudanças climáticas causem aproximadamente 250 mil mortes adicionais por ano, devido à desnutrição, à malária, à diarréia e ao estresse por calor.
3) Os custos diretos dos danos à saúde (sem contar os custos nos setores determinantes da saúde, como agricultura, água e saneamento) são estimados entre US$ 2 bilhões e US$ 4 bilhões por ano até 2030.
4) Áreas com pouca infraestrutura de saúde, principalmente nos países em desenvolvimento, serão menos capazes de lidar com os danos causados pelas mudanças climáticas.
5) Reduzir as emissões de gases de efeito estufa (por meio de melhores opções de transporte, utilização de alimentos e energia) pode resultar em melhoria da saúde, principalmente por redução da poluição do ar
O preconceito
Ignorar a voz de Greta não é um bom negócio. Críticas à postura, aos argumentos ou às influências que ela recebe podem ser feitas dentro dos limites da civilidade. Não é o caso dos ataques ao seu modo particular de pensar e se expressar. Isso é só preconceito.
"Cada vez que um autista fala e a sociedade o desdenha, a mensagem é 'você não tem voz', 'sua história não me interessa', 'você não sabe, não pode, não deve", afirma Fátima de Kwant, mãe de um autista adulto, em um artigo publicado na última edição da Revista Autismo. "Greta desafia o preconceito e mostra que as gerações mais novas de autistas leves estão, de fato, mudando o mundo", escreve Fátima.
Obrigada, Greta, por martelar a mensagem mais urgente de nossas vidas. Quando o ar se torna irrespirável, colhemos a pior das mortes. Exatamente a que estamos plantando.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.