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Cristiane Segatto

O autismo de Greta: por que começar 2020 ouvindo a melhor voz de 2019

Cristiane Segatto

01/01/2020 04h00

Crédito: Cristina Quicler /AFP

De tão peculiar e energética, a voz de Greta Thunberg se faz ouvir. A fala ligeiramente pedante, quase gritada, soa estranha, mas muito autêntica. Greta parece absolutamente convicta de suas palavras. O tom amplifica a urgência do alerta sobre as mudanças climáticas, levado aos quatro cantos do mundo pela adolescente indicada ao Prêmio Nobel da Paz.

Com tantos sinais de distinção, não demoraria até que ela se tornasse alvo de sucessivos golpes baixos ao longo de 2019. Haters não toleram a diferença. Disseram que Greta parecia um robô, que talvez não fosse gente.

O que os incomoda não é apenas a mensagem obstinada. É também a expressão facial limitada, os gestos irritadiços e outros sinais do autismo de Greta. O que os incomoda é a diferença. Algo que, no caso dela, parece ter se tornado um trunfo.

O superpoder     

Para Greta, o que significa ser autista? Em novembro, ela falou sobre isso em um dos programas de TV de maior audiência dos Estados Unidos. Parecia pouco à vontade diante das luzes do estúdio e do alvoroço dos aplausos, mas foi em frente, cumpriu o roteiro dos talk shows e encantou a audiência com a objetividade de sempre.

"Ser diferente é um presente", disse Greta à apresentadora Ellen DeGeneres. "É preciso pensar fora da caixa, principalmente em uma crise como esta. As pessoas que funcionam de forma diferente podem ser uma boa fonte para isso".

Greta recebeu o diagnóstico de Síndrome de Asperger, uma forma de autismo considerada leve. Uma condição que, em outras entrevistas, ela comparou a uma espécie de superpoder, desde que a pessoa possa contar com o apoio da família e o suporte adequado de profissionais de saúde.

Foi o que aconteceu com ela. Logo no início da vida escolar, a menina começou a apresentar dificuldades de interação. Tinha o chamado mutismo seletivo, caracterizado pela recusa em falar em determinados contextos sociais. Aos 11 anos, recebeu o diagnóstico de depressão. Atualmente, Greta convive também com o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e com o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).

O hiperfoco

Nada disso a impediu de iniciar um movimento internacional de estudantes que pede medidas concretas para combater as mudanças climáticas. Greta segue influenciando milhões de pessoas em todo o mundo. Foi eleita, merecidamente, a personalidade do ano pela revista Time.

No Brasil, como em outros países, o exemplo de Greta inspira as comunidades interessadas em discutir o autismo. "Ela é um novo rosto para o transtorno do espectro do autismo (TEA)", afirma Tiago Abreu, criador do Introvertendo, um podcast onde autistas conversam.

Em um dos episódios recentes, Abreu destaca o hiperfoco de Greta, uma das características que costumam ocorrer no TEA. O hiperfoco é a absoluta concentração em uma atividade ou interesse. É o que faz a pessoa se dedicar tanto a uma atividade a ponto de se destacar e de obter muito sucesso nela.

"Ela é um exemplo de que as pessoas dentro do espectro podem chegar longe se utilizarem seu hiperfoco", diz Abreu. "Ele faz com que a Greta não consiga seguir levando a vida dela, como se nada estivesse acontecendo, diante da urgência da crise climática. Para ela, não é possível dissociar as duas coisas. Greta vai seguir batendo na mesma tecla", diz Abreu.

A mensagem

Por que começar 2020 ouvindo a melhor voz de 2019? Por várias razões, mas destaco uma delas: sem ambiente viável, não há saúde.  A Organização Mundial da Saúde listou cinco exemplos do impacto das mudanças climáticas sobre as condições de vida:

1) As mudanças climáticas afetam os determinantes sociais e ambientais da saúde – ar limpo, água potável, alimentos suficientes e abrigo seguro.

2) Entre 2030 e 2050, estima-se que as mudanças climáticas causem aproximadamente 250 mil mortes adicionais por ano, devido à desnutrição, à malária, à diarréia e ao estresse por calor.

3) Os custos diretos dos danos à saúde (sem contar os custos nos setores determinantes da saúde, como agricultura, água e saneamento) são estimados entre US$ 2 bilhões e US$ 4 bilhões por ano até 2030.

4) Áreas com pouca infraestrutura de saúde, principalmente nos países em desenvolvimento, serão menos capazes de lidar com os danos causados pelas mudanças climáticas.

5) Reduzir as emissões de gases de efeito estufa (por meio de melhores opções de transporte, utilização de alimentos e energia) pode resultar em melhoria da saúde, principalmente por redução da poluição do ar

O preconceito

Ignorar a voz de Greta não é um bom negócio. Críticas à postura, aos argumentos ou às influências que ela recebe podem ser feitas dentro dos limites da civilidade. Não é o caso dos ataques ao seu modo particular de pensar e se expressar. Isso é só preconceito.

"Cada vez que um autista fala e a sociedade o desdenha, a mensagem é 'você não tem voz', 'sua história não me interessa', 'você não sabe, não pode, não deve", afirma Fátima de Kwant, mãe de um autista adulto, em um artigo publicado na última edição da Revista Autismo. "Greta desafia o preconceito e mostra que as gerações mais novas de autistas leves estão, de fato, mudando o mundo", escreve Fátima.

Obrigada, Greta, por martelar a mensagem mais urgente de nossas vidas. Quando o ar se torna irrespirável, colhemos a pior das mortes. Exatamente a que estamos plantando.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.