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Cristiane Segatto

Chikungunya: aos 8 anos, Geo precisou de quimioterapia e três meses de UTI

Cristiane Segatto

11/12/2019 04h00

Aos 10 anos, Geovanna com os pais, Parima e Lucilene, na festa junina deste ano (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

Durante as semanas em que a filha de 8 anos mal abria os olhos ou conseguia reconhecer os pais na BP, a Beneficência Portuguesa de São Paulo, a funcionária pública federal Lucilene Coutinho de Queiroz Veras dizia à médica:

— Quando a Geo voltar a falar, a senhora vai ver o quanto ela é interessante. Minha filha é uma benção. Uma leitora de primeira.

Nesses momentos, a responsabilidade pesava ainda mais sobre os ombros da oncologista pediátrica Rita Kechichian. Não bastava salvar a menina Geovanna de Queiroz Veras. Era preciso fazer o máximo para evitar sequelas que comprometessem seu desenvolvimento intelectual.

Com dedicação aos estudos, Geovanna vinha construindo as bases de uma linda trajetória. Tinha uma família amorosa e uma vida confortável e segura em Boa Vista, capital de Roraima. O cenário era cor-de-rosa. Até que, em outubro de 2017, surgiu um invasor sem qualquer noção de limites: o Aedes aegypti, o mosquito que levaria a menina a passar três meses na UTI e a enfrentar 60 sessões de quimioterapia.

O invasor

Não há cerca ou arma de fogo capaz de conter o Aedes. Ele está no ar, transmitindo diferentes vírus de lá para cá, de qualquer um para qualquer outro. Em Geovanna, o mosquito depositou o chikungunya. Na maioria dos infectados, o vírus costuma provocar febre acima de 39 graus, dores nos músculos e nas articulações, manchas vermelhas na pele. Cerca de 30% dos afetados sequer apresentam sintomas.

Naquele ano de 2017, Roraima registrou mais de 4 mil casos prováveis de infecção pelo chikungunya, segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde. Geovanna entrou para as estatísticas, mas como um caso incomum.

A infecção desencadeou uma hiperativação do sistema imunológico, uma reação que pode ser fatal. Em poucas semanas, Geovanna piorou a ponto de precisar ser transferida para São Paulo em UTI aérea paga pelo plano de saúde. Durante o transporte, o cérebro da menina começou a ser afetado rapidamente.

"Minha filha, que sempre foi saudável, de repente ficou com o olhar perdido, com os bracinhos balançando e sem conseguir controlar a cabeça", conta a mãe, Lucilene.

Em fevereiro de 2018, Geovanna e a médica Rita, caminhando em um corredor do hospital. A menina conseguia dar poucos passos (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

A síndrome

Quando a paciente chegou à BP, a médica Rita foi chamada. "Ela estava inconsciente, não reconhecia os pais e mal abria os olhos. Havia risco iminente de morte", conta. A confirmação do diagnóstico foi rápida: a infecção pelo chikungunya desencadeou uma hiperativação do sistema imunológico, conhecida como síndrome hemofagocítica.

Em vez de atacar o vírus, as células de defesa passam a digerir outras células normais do próprio corpo. Essa alteração celular acarreta febre, danos no baço, no fígado, no cérebro, na medula óssea, hemorragias e infecções. Sem diagnóstico e intervenção rápida, cerca de 40% dos pacientes morrem em poucas horas.

O tratamento

Ainda inconsciente, Geo começou a ser submetida a um forte tratamento quimioterápico. Embora a menina não tivesse câncer, as drogas adotadas agiam como se as células a serem atacadas fossem malignas.

"As células que precisávamos destruir não eram malignas, mas se comportavam como se fossem", afirma Rita. "Em uma semana, a menina começou a apresentar sinais de melhora. Teve muita sorte".

O tratamento seria longo. Geo enfrentou sessões semanais de quimioterapia, durante um ano e meio. Além de altas doses de corticóides. Durante seis meses (três deles na UTI), não pôde sair do hospital. Depois disso, a família foi obrigada a permanecer em São Paulo porque Geo era internada todas as quartas-feiras para fazer o tratamento.

Em dezembro de 2017, Geovanna tocava no rosto de Parima e perguntava: "É você mesmo, papai?" (Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

A recuperação

No início de dezembro de 2017, quando voltou a reconhecer a família, Geo tocava no rosto de Parima Dias Veras, juiz da 1ª Vara da Infância e da Juventude, e perguntava: "É você mesmo, papai?".

Era ele, mas não só ele. A família teve um papel fundamental na recuperação de Geovanna. Eles se revezavam para que a menina não ficasse sem carinho e estímulos. A irmã mais velha adiou o casamento. A outra irmã interrompeu o doutorado. Lucilene só desgrudava da caçula quando tinha certeza de que ela estaria sendo bem cuidada.

Na UTI, com a irmã Mirella e os livros. Durante o tratamento, Geovanna leu dezenas deles (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

Foi preciso reaprender muita coisa. Geo acordou falando em escola, mas a recuperação dos conhecimentos adquiridos antes da picada do mosquito era lenta. Um dia voltaram algumas letras. Depois, o alfabeto. Em outra semana surgiram os números. Aos poucos, a matemática fez sentido. Até que as cores passaram a ser ditas não só em português, como em inglês.

A humanização

A menina não perdia a chance de frequentar a escolinha do hospital. Durante a longa estada, leu mais de 50 livros. "Aprendi muita coisa lá. Tinha professora de inglês, contadora de histórias e voluntários. Hoje desenho bem, mas não sou nenhum Picasso", diz. "Um dia o hospital inteiro ficou super feliz porque apareceu um cachorrinho que a gente podia tocar".

Cuidados como esses existem em muitos hospitais. São medidas criadas com o objetivo de tornar os serviços de saúde mais humanos e empáticos. "Para mim, humanização é a afetividade que a gente vai desenvolvendo com cada criança. Não escondo nada dela porque as picadas das agulhas são reais", diz Rita. Com Geo, foi assim.

"Foi uma alegria imensa para mim e toda a equipe ver desabrochar uma criança linda, leve e saltitante. Aquela que os pais diziam que existia", afirma a médica. "Enquanto a Geo esteve inconsciente, eu estava ali, ao lado do leito, ajudando a virar essa página da vida dela", diz Rita.

Aproveitando os raios de sol, em junho de 2018. Nos intervalos das sessões de quimioterapia, Geovanna brincava (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

O privilégio

Aos 10 anos, totalmente recuperada, a menina voltou a morar em Boa Vista. Seguirá em acompanhamento médico periódico. "Sabia que o caso dela era grave, mas nunca deixei que os médicos me contassem detalhes, nem pesquisei na internet. Não queria que nada interferisse na minha fé porque eu sabia que ela ficaria boa", diz Lucilene.

"É triste ver que nem todos podem contar com o acesso à saúde que a minha filha teve. Recebi uma benção, mas todo mundo merece isso".

Lucilene com a filha em fevereiro de 2018. "Sabia que o caso dela era grave, mas não quis saber detalhes. Não queria que nada interferisse na minha fé" (Foto: Arquivo pessoal/ UOL VivaBem)

Foram necessários dois anos de investimento e dedicação para que hoje Geo pudesse comprovar, com suas próprias palavras, o quanto é interessante. Recentemente, ela participou de uma feira de Ciências que reuniu escolas de Roraima. O grupo ficou em terceiro lugar e vai viajar para Minas Gerais.

Quando pergunto sobre o projeto, Geo explica como se fizesse um "pitch de elevador", aquela apresentação rápida e objetiva de uma ideia a um investidor.

— O nosso projeto se chama "Reaproveitamento do ramo seco da palmeira Mauritia flexuosa como recurso didático". É o nosso buriti. Com ele fazemos materiais didáticos para escolas indígenas. Dá para fazer capinhas para os lápis de cor. Assim, eles não ficam muito pequenos na hora de escrever. Fazemos capas de borracha com o ramo para ela não quebrar na hora de apagar. E, também, cola escolar produzida com a seiva do buriti, apontadores com depósito, réguas, estojo e até um isopor biodegradável. O nosso projeto é único. Uma ideia inovadora!

Essa é Geo, a menina que teve a sorte e o privilégio de ser socorrida.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.