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Cristiane Segatto

HPV: Por que o SUS deveria vacinar os homens que fazem sexo com homens

Cristiane Segatto

30/10/2019 04h00

Crédito: iStock

Faz quase 30 anos que o dentista Sergio Funari se dedica a cuidar dos pacientes atendidos no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. Para ele, são inesquecíveis as lembranças e as perdas do início da epidemia de aids.

Antes de matar, o vírus HIV provocava lesões imensas na cavidade oral. Ninguém queria tocar naquilo, nem tinha recursos certeiros para aliviar o sofrimento. Funari persistiu na tentativa de ajudar e de entender. Estudou, se especializou, não arredou pé.

Acabou se tornando uma referência entre os profissionais que conhecem, de fato, lesões de boca provocadas por vírus sexualmente transmissíveis. Graças ao avanço no tratamento da aids, a frequência de problemas bucais provocados pelo HIV diminuiu drasticamente.

"Hoje vejo muitas lesões por HPV, o papilomavírus humano", diz Funari. "São verrugas na bochecha, no lábio, na língua. Isso quando a pessoa tem sorte. Do contrário, surgem cânceres de orofaringe".

A prática adquirida em décadas de atendimento despertou nele o interesse acadêmico pelo tema. No doutorado defendido recentemente na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, o dentista estudou o conhecimento e a infecção pelo HPV em homens que fazem sexo com homens (HSH).

O termo HSH abrange gays, bissexuais, transgêneros e homens autoidentificados como heterossexuais que se envolvem em sexo com outros homens.

O HPV entre nós

É quase impossível fazer sexo e não contrair o papilomavírus humano (HPV) em algum momento da vida. Isso vale para qualquer pessoa. Os cerca de 200 tipos de HPV conhecidos infectam pele e mucosas de homens e mulheres em qualquer idade.

Na maioria das vezes, não percebemos que fomos infectados. O vírus é eliminado espontaneamente, sem causar sintomas. Nem sempre é assim.

Em cerca de 1% dos casos, surgem verrugas genitais e anais. São alterações incômodas que, além de coceira e ardor, podem causar danos psíquicos. A pessoa se sente portadora de uma moléstia, algo que dificulta os relacionamentos. Em um grupo ainda menor, o HPV causa câncer. Ele pode ocorrer no colo do útero, na vagina, na vulva, no pênis, no ânus, na boca e na garganta.

Usar camisinha pode reduzir, mas não elimina o risco de contrair o HPV. Basta encostar na pele para pegar o vírus. A vacina é a forma eficaz de prevenir a infecção pelo HPV e evitar todos esses danos físicos e emocionais. Na rede pública, ela é oferecida a meninas de 9 a 14 anos e meninos de 11 a 14 anos. Nas clínicas particulares, pode ser aplicada em qualquer idade, sob recomendação médica.

Quanto mais pessoas forem imunizadas, menor será o risco de se relacionar com alguém que esteja transmitindo o vírus.

Dois estudos

Em sua dissertação de doutorado, Funari apresenta os resultados de dois estudos. No primeiro, foram analisadas amostras extraídas das mãos, genitais e região anal de 28 homens que fazem sexo com homens. Os próprios voluntários da pesquisa fizeram a coleta por meio de um cotonete estéril (swab), umedecido em solução salina.

O material microbiológico extraído da boca foi obtido por meio de gargarejo. As amostras foram testadas para a presença do DNA do HPV. No grupo de 28 participantes do estudo, o HPV foi encontrado em 14,8% das amostras extraídas das mãos; 17,9% das de boca, 46,4% das amostras dos genitais; e 48,1% das extraídas da região anal.

O dentista Sergio Funari, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. Há quase 30 anos, ele acompanha pacientes com lesões de boca provocadas por vírus sexualmente transmissíveis (Foto: Arquivo pessoal/UOL VivaBem)

O que eles sabem

Para avaliar o conhecimento e as crenças sobre o HPV, Funari realizou uma pesquisa pela internet com 454 HSH brasileiros, moradores de qualquer lugar do país. A idade dos participantes variou entre 18 e 72 anos. Os principais resultados:

94% da amostra já tinham ouvido falar sobre o HPV

82% sabiam que ele pode causar problemas de saúde para homens

77% sabiam que o HPV pode causar verrugas genitais

50% deles o associaram aos cânceres de ânus e orofaringe

"Embora o conhecimento geral sobre HPV seja alto entre os participantes do estudo, a maioria acha que a camisinha evita a infecção", diz Funari. "Não é verdade. Basta o contato pele a pele das preliminares para contrair o vírus. É nesse momento que as pessoas pegam não só o HPV, como a sífilis, uma doença cuja incidência vem aumentando muito em São Paulo".

O pesquisador também observou que falta conhecimento específico sobre câncer anal. Apenas 18,5% dos participantes concordaram com a afirmação de que a incidência da doença está aumentando em homens que fazem sexo com homens.

"Os casos de câncer anal crescem nessa população. A mucosa anal é totalmente permeável, o que aumenta a exposição dos homens ao HPV e a outros vírus", diz.

Para refletir

O trabalho desperta uma reflexão necessária e urgente: como informar essa população, de forma eficaz, sem recorrer a mensagens amedrontadoras? "Precisamos de uma política de esclarecimento técnico, completo e sem julgamento. No Brasil, somos paupérrimos nisso", diz Funari.

Ele conta que, em sua última visita a um hospital geral no Exterior, encontrou vários folhetos produzidos segundo essa ótica. Mensagens do tipo: "coisas que você precisa saber se você faz sexo oral com homem" ou "coisas que você deve saber se faz sexo anal" ou, ainda, "se você fizer isto, estará exposto a tal coisa".

Informação sem meias palavras, sem rodeios ou julgamentos. "Quem quer lição de sexualidade? Não quero que ninguém se meta na minha vida sexual. Nem eu, nem você. As mensagens não devem dizer se determinada prática é boa ou ruim. Quem decide isso sou eu. O papel do Estado e dos profissionais de saúde é dar informação técnica para que as pessoas decidam se aceitam correr aquele risco ou não", diz ele.

Vacina para HSH

Por que é preciso ter uma atenção especial para essa fatia específica da população, a dos homens que fazem sexo com homens? "HSH e homens bissexuais apresentam um risco 17 vezes mais elevado de desenvolver um câncer anal", afirma o pesquisador. "Temos uma população com esse grau de risco e ela não recebe informação? Acho incrível que o SUS não ofereça a vacina para essas pessoas ou informe que, quem puder, deve se vacinar em uma clínica particular."

No estudo, o menor índice de intenção de tomar a vacina apareceu justamente entre os mais jovens (18 a 26 anos). Nesse grupo, apenas 13% revelaram ao médico que fazem sexo com homens. "Eles não só não tomam a vacina, como não contam aos profissionais de saúde", diz Funari.

Ao vacinar a população feminina, o Estado também protege o grupo masculino que irá se relacionar com ela. No entanto, os homens que fazem sexo com homens não são protegidos pelos benefícios da vacinação em mulheres. O trabalho de Funari demonstra que o SUS precisa olhar para essa realidade. Ela é cristalina. Basta querer enxergá-la.

 

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.