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Cristiane Segatto

Câncer de mama: como a mídia contribui para o diagnóstico precoce

Cristiane Segatto

09/10/2019 04h00

Crédito: iStock

Jornalistas de saúde gostam de acreditar que ajudam a salvar vidas. O apego a essa crença é um estímulo para persistir na profissão, mesmo em um momento de grave crise do modelo de negócio da mídia tradicional — em especial o dos veículos impressos.

Gerar informação para salvar vidas. Está aí um belo propósito, mas será que o bom jornalismo de saúde tem, de fato, esse poder? Qual é a métrica capaz de apontar tamanho impacto?

Em sua tese de doutorado defendida na semana passada no A.C. Camargo Center Center, em São Paulo, o pesquisador José de Moura Leite Netto conclui que o acesso à informação pela mídia e pelas campanhas de conscientização (como o Outubro Rosa) aumenta, de fato, a chance de diagnóstico precoce de câncer de mama.

Entre 2017 e 2019, foram entrevistadas 607 pacientes (entre 35 e 74 anos) da instituição nas primeiras semanas após a confirmação do diagnóstico.  Entre as participantes, 66,4% eram pacientes de planos de saúde ou particulares e 33,6% eram atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A maioria tinha alto nível de instrução (57% com graduação ou pós-graduação).

Consumo de mídia

A internet, consumida diariamente por 83,9% das pacientes, ultrapassou a televisão (81,2%) como meio mais importante de informação. Mais de um terço das mulheres afirmou ouvir rádio (38,4%) diariamente. Apesar do alto nível educacional das participantes, os veículos impressos fazem parte da rotina da minoria. Apenas 20,9% afirmaram ler jornais em papel (20,9%) ou revistas (5,6%) diariamente.

Os meios digitais também superam os demais como fonte de informação sobre câncer. A maioria das entrevistadas citou sites, portais e blogs (45%). Em seguida apareceram a televisão (43,5%), a revista impressa (19,7%) e os jornais impressos (10%). Embora tenham afirmado confiar pouco nas redes sociais, 66% das participantes do estudo usam Facebook, 35% Instagram e 15% o YouTube. O aplicativo WhatsApp é usado por 94% das pacientes de convênio e por 84% das do SUS.

Crédito: Reprodução/ A.C. Camargo Cancer Center

O papel do Bem Estar

Por mais que a internet esteja cada vez mais presente no cotidiano de todas as classes sociais e faixas etárias, a televisão ainda se mantém relevante como formador de opinião. Uma das revelações mais interessantes do estudo diz respeito ao impacto de programas que dedicam boa parte da programação aos temas de saúde.

É o caso do Bem Estar, da Globo, uma das raras atrações desse tipo. Durante a realização da pesquisa ele perdeu o status de programa para virar um quadro do Encontro com Fátima Bernardes.

Entre as mulheres que disseram assistir a programas do tipo Bem Estar, 40,5% receberam diagnóstico nas fases mais precoces da doença. Eles foram classificados no estadiamento T1 (até 2 cm de diâmetro) e T2 (até 5 cm de diâmetro).

No grupo de pacientes com doença mais avançada, apenas 29,2% disseram assistir a esse tipo de atração. Nesses casos, as mulheres chegaram com tumores T3 (mais de 5 cm de diâmetro) ou T4 (qualquer tamanho, mas invadindo o tórax ou a pele).

Depois de isolar outras variáveis, os pesquisadores concluíram que esse tipo de conteúdo, assim como as campanhas de conscientização, contribui para o diagnóstico precoce do câncer de mama.

"É um dado interessante e triste porque uma produção que era dedicada exclusivamente à saúde perdeu o status de programa, saiu do núcleo de jornalismo e foi parar no entretenimento", diz Moura.

Na parte da pesquisa em que se investigou o Top of Mind, 21% das pacientes citaram o Bem Estar. Não é pouco. Qual é o impacto social da perda de um espaço como esse para a divulgação de conteúdo de saúde?

"Levar informação à população que reforce a importância do diagnóstico precoce e ajude a reduzir a mortalidade é muito importante. Infelizmente, o jornalismo tem se voltado para o entretenimento, e não para a qualidade da informação e da evidência científica", afirma Moura.

Crédito: Reprodução/ A.C. Camargo Cancer Center

Crise do impresso

Os pesquisadores pediram a cada uma das pacientes que citassem até três veículos impressos onde elas haviam encontrado informação sobre câncer. O jornal Folha de S. Paulo foi mencionado por 4,7% das pacientes. Entre seguida, apareceram O Estado de S. Paulo (1,8%) e o Agora (0,6%). Entre as revistas, as mais lembradas foram Veja (10,1%), Claudia (2,6%) e Saúde! (2%).

É importante notar que os últimos dois anos (2017 a 2019), período em que a pesquisa foi realizada, foram marcados por importantes reduções de orçamento, demissões e fuga de talentos na mídia impressa. Isso pode ter comprometido a quantidade e a qualidade dos conteúdos de saúde produzidos por alguns dos veículos tradicionais.

"O enfraquecimento da mídia impressa, em especial o dos espaços dedicados à cobertura de saúde e ciência, é um problema", diz o pesquisador. "Quando a pessoa perde o interesse ou o acesso à mídia impressa convencional, ela deixa de receber um conteúdo mais analítico e apurado com um pouco mais de fôlego. Esse tipo de informação, consumida com mais calma, é essencial para ampliar o entendimento da sociedade sobre o câncer e outras doenças".

Segundo a médica Fabiana Makdissi, diretora do departamento de mastologia do A.C. Camargo e uma das co-orientadoras da tese, o jornalismo de saúde é capaz de salvar vidas tanto quanto a medicina. "O medo paralisa, mas a informação move", diz ela. "Esse trabalho demonstra que o papel social do jornalista de saúde é tão importante que ele se torna co-responsável pelo diagnóstico precoce", afirma.

Reprodução/ A.C. Camargo Cancer Center

Crescimento do digital

O surgimento de novas ferramentas e formas de monetização amplia as possibilidades de produção e distribuição de conteúdos de saúde – sejam eles bons ou ruins. "A democratização da mídia é importante. O problema é que ela também democratiza a má informação. Hoje vemos muito mais gente sem preparo, desinformando. Como essas pessoas não fazem parte de uma empresa, elas não sofrem sanções pelas fake news e pós-verdades que divulgam", afirma o pesquisador.

Quando pediram às pacientes que citassem até três sites, portais ou blogs pelos quais elas tenham se informado sobre câncer, o mais lembrado foi o buscador Google, mencionado por 30,1% das entrevistadas. Em seguida, apareceram o site do A.C. Camargo (13,3%) e o portal Oncoguia (3,6%). O UOL foi mencionado por uma paciente. O G1, por duas. Terra, iG e R7 não foram lembrados.

Desigualdade social

Embora não tenha sido o foco principal da pesquisa, o trabalho revelou também o peso da desigualdade social no acesso ao diagnóstico precoce. Os pesquisadores perguntaram às pacientes se algum especialista havia suspeitado que elas pudessem estar com câncer. No grupo de mulheres com planos de saúde, 87,6% disseram que sim. Entre as pacientes do SUS, isso aconteceu com apenas 25,4% delas.

"Conseguimos demonstrar que a divulgação bem feita pode impactar na descoberta precoce da doença e que o acesso à informação está atrelado ao contexto social", diz Moura. "Além de todas as dificuldades de acesso, as pacientes do SUS também têm menos acesso à informação de qualidade", afirma.

Para o cirurgião Ademar Lopes, orientador da tese, o que há de mais relevante no trabalho foi ter demonstrado uma relação entre a condição socioeconômica da paciente com o estadio de diagnóstico de câncer de mama. "As mulheres com um melhor nível cultural se informam mais e recebem o diagnóstico em uma fase mais precoce da doença. Esse é um trabalho de utilidade pública", diz ele.

Foram levantados também os principais mitos relacionados à prevenção do câncer. Entre as crenças citadas pelas pacientes apareceram "ingerir água alcalina", "adotar dieta cetogênica", "comer pepino", "não guardar mágoa" etc.

Reprodução/ A.C. Camargo Cancer Center

Cria da casa

O pesquisador José de Moura Leite Netto é jornalista e vice-presidente da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência). Chegou ao A.C. Camargo em 2008 para trabalhar como assessor de comunicação.

Com o saudoso patologista Humberto Torloni (tio da atriz Cristiane Torloni), falecido em 2017, Moura aprendeu que câncer é só o nome. Para tratar o paciente é preciso conhecer também o sobrenome, o RG, o CPF e o CEP de cada tumor. Com Torloni e outros gigantes, Moura aprendeu o beabá necessário a qualquer jornalista que se atreve a escrever sobre a doença.

Instigado pelas primeiras letras, passou a frequentar reuniões de aprendizado às 7 horas da manhã, a ler papers e aprender com os inúmeros pesquisadores da casa até tomar coragem de ir além. Incentivado pelo cirurgião Ademar Lopes, encarou o mestrado.

Durante onze anos de trabalho na instituição onde soube crescer e aparecer, o assessor de comunicação ajudou jornalistas de todo o Brasil a colocar em pé reportagens que, em muitos casos, nasciam capengas nas redações.

Atualmente Moura trabalha em uma agência de comunicação em São Paulo. Na semana passada, ele se tornou doutor em Ciências, com ênfase em Oncologia. Não em uma sala qualquer. No auditório Humberto Torloni.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.