Hepatite fulminante: aos 13 anos, Breno foi salvo pelo fígado de um idoso
Foi preciso se ajoelhar aos pés da médica e implorar para que o filho de 13 anos fosse acolhido na Santa Casa de Santos, mas uma mãe em desespero conseguiu que Breno dos Santos Reis recebesse o encaminhamento que salvaria sua vida. Naquele momento, em abril de 2014, era tudo ou nada.
Com os olhos amarelados, fraco, com vômitos, diarreia e dificuldade até para sair da cama, o garoto havia sido levado diversas vezes a uma unidade do Sistema Único de Saúde (SUS), em Cubatão, onde a família mora. Foram semanas de idas e vindas, exames e consultas até que os médicos diagnosticassem uma hepatite — mas não sabiam exatamente de que tipo.
A vendedora Verônica dos Santos, mãe de Breno, via o filho acordar cada dia pior. Resolveu pegar o garoto e bater às portas da Santa Casa de Santos, uma instituição constantemente pressionada pela alta demanda de pacientes vindos das cidades vizinhas.
"Quando apareceu uma médica, eu me joguei nos pés dela e disse que o meu filho estava morrendo. Ela decidiu atendê-lo. Acho que foi a mão de Deus", diz Verônica. Internado na Santa Casa para mais investigações, o garoto foi ficando ainda mais fraco, inchado e ofegante. A hipertensão de Verônica saiu do controle.
A transferência
Nos bastidores, os médicos da Santa Casa discutiam o caso com Carolina Pimentel, hepatologista do Hospital de Transplantes do Estado de São Paulo (o antigo Hospital Brigadeiro), na capital. "Só pela conversa com eles e com os resultados dos exames, deu para perceber que o menino estava tendo uma hepatite fulminante", diz Carolina.
"Acionei todos os mecanismos para trazê-lo a São Paulo o mais rápido possível. Às vezes, em questão de horas, um paciente como ele piora tanto que chega sem condições de suportar um transplante", afirma.
A hepatite fulminante é a maior urgência da hepatologia. Ela acontece quando a pessoa tem um fígado normal e, de repente, ele deixa de funcionar. Em casos assim, o paciente é incluído na lista de prioridades da Central de Transplantes.
A confusão mental
Carolina foi conversar com o paciente, assim que ele chegou ao hospital. Nos primeiros minutos, Breno sabia quem era, onde estava e o que havia acontecido. De repente, começou a ficar confuso, a falar alto e a dizer coisas sem sentido.
"Breno me chamava de mãe, embora Verônica estivesse ao lado dele", diz a médica. Um pouco depois, o garoto perdeu os sentidos. "Foi uma cena marcante para mim e chocante para a mãe, que saiu aos prantos da UTI", conta Carolina.
Era um sinal de encefalopatia (confusão mental provocada por toxinas que circulam na correnta sanguínea devido ao mau funcionamento do fígado). Breno foi inscrito na lista de prioridades. Sem um transplante, ele morreria em pouco tempo.
"O menino estava fadado à morte, mas teve a oportunidade de receber a vida graças à doação de outra família. Isso é o que há de mais bonito no mundo dos transplantes", diz a médica.
Aos 13 anos, Breno recebeu o fígado de um idoso que morreu em Santa Catarina. O transplante e a recuperação foram um sucesso. Disciplinado, ele não descuida da medicação de uso contínuo para evitar rejeição ao órgão, controlar a pressão arterial etc. São 14 comprimidos diários.
Faz acompanhamento médico a cada três meses e leva vida praticamente normal. "Só não posso beber e fumar, mas isso ninguém deveria fazer", diz Breno.
Qual foi o problema
Só no Hospital de Transplantes do Estado de São Paulo, a família descobriu a razão do problema de Breno. A falência do fígado foi provocada pela hepatite autoimune. Essa é uma doença genética que pode se manifestar de diversas formas.
Pode começar na infância, com um processo de inflamação e cicatrização progressiva do órgão. O fígado pode ficar cheio de cicatrizes (fibrose) e, em uma etapa posterior, ocorre a cirrose (quando a função fica comprometida).
Em outros casos, a hepatite autoimune surge apenas na fase adulta. A pessoa nunca teve sintomas e, quando vai fazer um exame de sangue, descobre que as enzimas do fígado estão aumentadas. Nessas formas mais lentas, a doença crônica pode ser controlada com medicamentos imunossupressores disponíveis no SUS.
Breno teve uma terceira forma de hepatite autoimune. É a menos frequente. A pessoa vive anos sem ter sinal do problema. De repente, existe uma ativação da doença. Em vez de surgir de forma lenta e progressiva, ela produz uma grande e abrupta inflamação que leva à completa disfunção do fígado. É a chamada hepatite fulminante (ou insuficiência hepática aguda).
"Se o médico do posto de saúde ou o clínico geral não desconfia do problema e encaminha o paciente a um hepatologista, ele pode ficar sem diagnóstico e perder a chance de ser tratado", diz a médica Carolina. "O colega não precisa diagnosticar, mas ele precisa suspeitar de que há alguma coisa errada".
Final feliz
Com Breno, havia algo muito errado. Felizmente, a engrenagem da saúde pública se moveu a tempo de salvá-lo. Aos 19 anos, Breno tem energia para lutar capoeira e fazer aulas de dança contemporânea. Ele também gosta de cantar e de atuar em grupos de teatro.
Em agosto, Breno comemorou aniversário com família em uma rede de fast food. Festejou com um sanduíche de cubos de frango defumado, salada e molho de alho e cebola. "Quem passa por um transplante precisa ter paciência. No começo, a gente não pode fazer esforço ou comer qualquer coisa, mas isso passa", diz Breno.
De tanto circular pelo ambiente da saúde, ele decidiu fazer faculdade de Farmácia. "Tinha curiosidade de entender o efeito dos remédios que eu tomo. Acabei descobrindo uma profissão", diz ele.
Para que histórias como a de Breno continuem existindo, o Hospital de Transplantes do Estado de São Paulo participa do Setembro Verde, mês de conscientização sobre a importância da doação de órgãos, com um ciclo de palestras. No domingo (15), haverá uma caminhada pela Avenida Paulista, em parceria com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (www.abto.org.br).
Se você deseja ser um doador de órgãos, não deixe de falar sobre isso com sua família. Que tal hoje, no jantar?
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