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Cristiane Segatto

O desejo de qualidade de vida é uma força capaz de mudar o mundo

Cristiane Segatto

14/08/2019 04h00

Crédito: iStock

Aos 41 anos, Carlo Linkevieius Pereira é diretor-executivo da Rede Brasil do Pacto Global, o braço da ONU (Organização das Nações Unidas) para o setor empresarial. Formado em química, ele começou a trabalhar com sustentabilidade logo no início da carreira. "Não conseguia entender como alguém podia passar oito horas diárias dentro de uma empresa sem ter tempo para a satisfação pessoal", diz ele. Recentemente, Pereira falou sobre o tema no Congresso Brasileiro de Qualidade de Vida, realizado em São Paulo. Em entrevista ao blog, ele defende a ideia de que a qualidade de vida pode transformar o mundo.

VivaBem: Como você define qualidade de vida?

Carlo Linkevieius Pereira: Podemos pensar em algo como hardware e software. No aspecto do hardware, qualidade de vida é cuidar da saúde física (fazer exercícios, cuidar da alimentação) e mental. Não diria exatamente religião, mas acho importante cultivar a espiritualidade. Gosto desse tipo de conexão. Na questão do software, a qualidade de vida depende da sua relação com o mundo, com o trabalho, com as pessoas.

VivaBem: Como a qualidade de vida pode transformar o mundo?

Pereira: O desejo de qualidade de vida está transformando o mundo. As pessoas cada vez mais entendem os seus direitos e querem promover a qualidade do mundo onde estiverem – dentro da sua casa, nas organizações onde atuam voluntariamente, no trabalho. Estão cobrando os governantes. Todo mundo quer ter satisfação pessoal e uma vida saudável. Basta ver como a população está mobilizada em torno da preocupação com os agrotóxicos. As pessoas querem saber o que estão comendo. Há uma cobrança muito forte dos consumidores.

VivaBem: Grande parte da sociedade brasileira está dividida e se mostra intolerante ao diálogo. Basta ver o ambiente de ofensas em que se transformaram as redes sociais. De que forma isso compromete a qualidade de vida?

Pereira: Esse momento de polarização é muito ruim. Uma pesquisa sobre reputação feita recentemente por uma agência de comunicação revelou que 20% do público está explicitamente polarizado. A maior parcela se resguarda e não se posiciona. Isso não é bom. As pessoas têm que ter a liberdade de se posicionar. As pessoas estão deixando de se posicionar para não ser repreendidas no trabalho e em outros ambientes. Quantas famílias brigaram nas últimas eleições por conta de votar neste ou naquele candidato? A polarização corrói o tecido social. A intolerância leva a tudo o que é negativo.

VivaBem: De que forma os objetivos do desenvolvimento sustentável das Nações Unidas se relacionam com a qualidade de vida?

Pereira: A Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) foi preparada por todos os setores da sociedade. São 17 objetivos e 169 metas de desenvolvimento sustentável. Dessas metas, 92% estão relacionadas a direitos humanos. A qualidade de vida é indissociável dos direitos humanos. O que são direitos humanos? Eles vão desde a liberdade de ir e vir, o acesso à água, à comida e à moradia até o equilíbrio étnico-racial e de gênero. Isso tudo influencia diretamente na qualidade de vida.

Carlo Linkevieius Pereira, diretor-executivo da Rede Brasil do Pacto Global, durante palestra no Congresso Brasileiro de Qualidade de Vida, realizado em São Paulo (Foto: Hugo Neves/ VivaBem)

VivaBem: Muito se fala sobre a busca de um propósito pelos indivíduos e pelas empresas. Por que isso é tão importante?

Pereira: Se a pessoa não tem um propósito bem claro na vida, ela vai se frustrar. Quando isso acontece, ocorre a perda da qualidade mental e emocional – algo de extrema relevância. Nas empresas, o propósito tem tudo a ver com qualidade de vida. Sempre fui meio workaholic. Não sou exemplo para ninguém. Acho que as pessoas têm que equilibrar melhor as coisas. Por essa minha característica, se o meu trabalho não estiver fazendo sentido para mim, a minha vida fica horrorosa. Além de ganhar um salário, preciso sentir satisfação pessoal naquilo que faço diariamente. Se você estiver matando um leão por dia e a empresa para a qual você trabalha estiver relacionada a escândalos ambientais, de corrupção ou qualquer outro, você vai se sentir mal. O impacto que as pessoas e as empresas produzem na sociedade é algo muito importante.

VivaBem: Na atual crise econômica em que milhões de pessoas estão apenas se virando em subempregos, trabalhar com propósito é um luxo?

Pereira: Acho que propósito não é um luxo. As empresas têm que se virar. A situação está complicada para o trabalhador. Temos um desemprego muito grande no Brasil. E, globalmente, altos índices de desemprego entre os jovens. Mesmo assim, hoje ninguém quer trabalhar sem propósito. Quando conversamos com jovens em grandes empresas, independentemente do cargo, eles entendem que a empresa tem que impactar positivamente. Dizem que não trabalhariam em empresas envolvidas em corrupção ou que não respeitam a sustentabilidade. As empresas têm hoje uma grande dificuldade de atrair e reter talentos. Aquelas que não estão se mexendo para representar a sociedade tal qual ela é estão ficando para trás.

VivaBem: Medidas como permitir que os funcionários troquem o terno e a gravata por bermuda têm impacto na qualidade de vida?

Pereira: As pessoas precisam sentir que têm a liberdade de ser quem elas são no ambiente de trabalho. Precisam ter a liberdade de expor suas ideias mais claramente. Quando as pessoas são homogeneizadas dentro de um uniforme, elas se sentem reprimidas. Se você está trabalhando vestido de si mesmo, a sua satisfação pessoal aumenta. Você se relaciona de outra maneira com os seus pares. Trabalhei em uma grande consultoria em que todos tinham que trabalhar de terno e gravata. Tinha um colega surfista, atleta, zen e que se alimentava bem. Quando ele era obrigado a colocar terno e gravata, ele virara outra pessoa. Era impressionante. Ele vestia aquela armadura e se comportava de maneira diferente. Quando as empresas estimulam o indivíduo (em vez de tentar homogeneizar as pessoas), isso promove qualidade de vida. Melhora a satisfação pessoal e gera um ciclo virtuoso.

VivaBem: Se o desemprego é elevado, a situação dos que permanecem empregados também não é boa. Muitos acumulam funções dos que foram demitidos e desenvolvem sérios problemas como ansiedade e depressão. Há clima para falar em qualidade de vida nessas empresas?

Pereira: As grandes empresas perceberam que, se não se adequarem, não vão ter mais os funcionários. Os jovens não se reconhecem mais nas empresas como elas estão. A minha visão pode parecer um pouco elitista, já que estou pensando em jovens que trabalham em grandes empresas. Mas grande parte da população brasileira trabalha em grandes empresas e são essas empresas que geralmente ditam as coisas. Independentemente da classe social, os jovens estão muito antenados. Se a gente for pensar nos grandes debates contemporâneos (a questão do Brexit, a eleição do Trump, o conservadorismo), isso não representa os jovens. No Reino Unido, 70% das pessoas até 34 anos votaram contra o Brexit. Não é por conta do fogo da juventude. É porque, de fato, as pessoas têm outra cabeça. Estão preocupadas com o que vão consumir. Qualquer marca que dê uma deslizada fica com a reputação destruída. O alinhamento da empresa à sociedade é fundamental. Se não houver esse alinhamento, a pessoa não vai estar satisfeita ali dentro. A satisfação no trabalho é um dos pilares fundamentais da qualidade de vida.

VivaBem: Nesse cenário, as empresas são mais suscetíveis que os governos?

Pereira: O motor das mudanças vem das empresas porque elas são mais suscetíveis às pressões sociais. Se as pessoas passam a boicotar uma empresa, ela vai responder rapidamente. A empresa não fica suscetível a mudanças domésticas. Se o governo de um determinado país muda de tom, aquele país acaba mudando. Com as empresas é diferente. Elas têm que responder à legislação e aos protocolos brasileiros, mas também aos internacionais. Muitas recebem investimentos estrangeiros. Por tudo isso, acredito que a qualidade de vida está movimentando o mundo. Em muitos lugares, as pessoas ainda são subjugadas e submetidas a muita coisa, mas hoje elas têm muito mais poder por causa da disseminação da comunicação eletrônica e online. A partir do momento em que as pessoas tomam consciência disso (e estão tomando cada vez mais), elas passam a exigir o que dá mais satisfação ou que traz mais qualidade de vida. O alimento tem que ser saudável, os serviços têm que ser bem feitos etc.

VivaBem: Qual é o seu grau de otimismo em relação ao Brasil e ao mundo?

Pereira: Em geral, costumo ser muito otimista para tudo. Acho que estamos em um hiato, não só no Brasil como no planeta. O secretário-geral da ONU diz que vivemos uma crise no multilateralismo no mundo. Os países estão se isolando cada vez mais. Há uma política isolacionista em vários aspectos. Daí, de novo, eu retorno às empresas. Hoje as empresas são multinacionais, transnacionais. Não tem empresa que não dependa de um comércio global. Os Estados Unidos falam tanto em se isolar, mas o comércio global responde por mais de 50% da receita das 500 maiores empresas americanas. Esse negócio de isolacionismo é balela. E aqui é preciso voltar a pensar nos jovens. Eles estão ultraconectados. Há uma diferença entre a geração dos millennials para a atual. O millennial é aquele jovem que vê uma coisa errada, se organiza e bota a boca no trombone no Facebook e no Instagram. A geração mais nova nem reclama. Ela já sai fazendo e transformando a realidade. Como as Nações Unidas estão investindo muito nos jovens, acho que daqui a um tempo vamos retomar um pensamento mais progressista. O multilateralismo é político. O comércio global e a interconectividade entre as pessoas vão muito bem, obrigado.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.