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Cristiane Segatto

O segredo do bom parto em uma maternidade do SUS

Cristiane Segatto

07/08/2019 04h00

No início do trabalho de parto, Ana Cristina de Barros conversa com a médica Carmen Lucia Heltai no Hospital Mario Degni, em São Paulo.(Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

Com as mãos sobre o ventre e uma expressão tranquila, Ana Cristina de Barros, de 22 anos, observava a movimentação da equipe de enfermagem no quarto individual em que, dali a quatro horas, daria à luz pela terceira vez.

Na última manhã de julho, Ana foi internada no Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni, no Rio Pequeno, em São Paulo, quando a bolsa que envolve o bebê no útero (preenchida pelo líquido amniótico) se rompeu.

O marido estava a caminho, mas as enfermeiras treinadas para conduzir o parto com segurança conheciam a história e as preferências dela.

"Ana é diferente da Maria e de qualquer outra pessoa. Vou fazer o que ela precisa e com respeito ao que está vivendo. Esse momento marca a vida de uma mulher", disse a enfermeira obstetra Karla Lima.

Karla (à esq.), Liliane e Renata: a equipe de enfermagem que fez o parto de Bruna, a terceira filha de Ana Cristina (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

Com dilatação do colo do útero e contrações irregulares, Ana precisou receber o hormônio ocitocina para estimular o início do trabalho de parto. Quando a médica Carmen Lucia Martins Heltai se aproximou do leito, Ana sorriu.

"Gostei daqui desde o primeiro dia. Está sendo tudo muito diferente do que eu conhecia. Os meus outros partos foram ruins", afirmou.

A enfermeira Renata de Castro aproveitou a deixa:

"Vamos mudar essa experiência hoje?"

Em pouco tempo, as contrações se tornaram regulares. As dores do parto vieram. Para aliviar o desconforto e ajudar a bebê a descer pela pelve da mãe, as enfermeiras orientaram a paciente a fazer movimentos sentada sobre uma bola suíça.

Bruna nasceu, saudável, às 14 horas. "Foi um parto muito mais tranquilo", conta Ana, agradecida. De fato, a equipe conseguiu mudar a experiência da paciente.

A garantia do parto seguro

A história de Ana é um exemplo de que o bom parto não tem mistério, mas exige planejamento da rede pública para que todas as mulheres possam ser atendidas com qualidade e respeito.

No momento em que deputados e senadores criam polêmica com projetos de lei que pretendem garantir às pacientes do SUS o direito de optar pela cesárea no momento do parto, é importante considerar as evidências científicas e os argumentos dos profissionais de saúde.

Em vez de dar canetadas que nem sempre contribuem para a organização da assistência à mulher no SUS, talvez os legisladores prestassem melhor serviço à sociedade se criassem condições para a garantia do parto seguro – seja ele normal ou por cesariana.

Sem a pretensão de ter resposta fácil para uma discussão complexa, fui conhecer de perto o Programa Parto Seguro, desenvolvido pelo Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim (CEJAM), uma organização social de saúde (OSS), em nove hospitais da rede municipal de São Paulo.

Na segunda gravidez, Aline recebe orientações da enfermeira Ana Lúcia para traçar um plano individual de parto (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

O que faz a diferença

Na opinião da enfermeira Renata de Castro, o segredo do bom parto é a liberdade de movimentos. "Antigamente a mulher ficava em jejum e em repouso. Isso fazia com que o trabalho de parto fosse mais prolongado. Era traumático", diz.

Foi o que aconteceu com a paciente Aline Silva Rosal, que teve o primeiro filho no Mario Degni, antes da adoção do Programa Parto Seguro. "Fiquei o dia inteiro deitada em uma maca, recebendo medicação para induzir o parto. Passei por quatro plantões e ninguém vinha verificar quanto eu tinha de dilação. No momento em que eu mais precisava de acolhimento, fui deixada em uma posição ruim e com fome", conta.

Na semana passada, Aline descobriu que as práticas mudaram. Grávida do segundo filho, ela passou por uma consulta de orientação à gestante. Nesses momentos, a enfermeira Ana Lúcia da Silva traça um plano individual de parto. Trata-se de um registro prévio dos desejos, expectativas e preferências.

Ana Lúcia explica os diferentes tipos de parto (com fotos), riscos e benefícios para mãe e bebê, fala de anestesia, de práticas de humanização como massagem, música, iluminação suave etc e dos passos para o sucesso do aleitamento. "Estou adorando essa conversa", dizia Aline. "Mudou tudo".

Material usado em consultas durante a gravidez para explicar às gestantes o que é uma cesárea (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

Cesárea para quem precisa

O índice de cesárea no Mario Degni é de 38%. "Em alguns casos, a cesárea é necessária e capaz de salvar a mãe e o bebê. O importante é saber que esse procedimento também pode ser humanizado. Logo depois do nascimento, posso colocar o bebê com a mãe, por exemplo", diz a enfermeira obstetra Miriam Siqueira do Carmo Rabello, do Cejam.

Por ser uma cirurgia de grande porte, com perda de sangue, risco de infecção e recuperação mais lenta, a cesárea não deveria ser rotina em nenhum bom serviço de saúde. "É preciso cortar sete camadas de tecido e depois suturar tudo até chegar à pele. A cesárea é algo totalmente diferente do fisiológico. Não pode ser banalizada como a escolha da cor de um esmalte", diz Miriam.

A enfermeira obstetra Miriam Rabello e a médica Carmen Lucia Heltai coordenam o Programa Parto Seguro no hospital (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

Ao mesmo tempo, a falta de acesso à cesárea nos casos em que ela é necessária (gestações de risco, por exemplo) é uma das causas de mortalidade materna. Em 2017, foram registradas 60,6 mortes por 100 mil no estado de São Paulo, o maior índice já verificado no estado desde 1996. Segundo a Secretaria de Estado da Saúde, o aumento está relacionado à melhoria na notificação das mortes.

"Há um descompasso na conduta", acredita a médica Carmen Lucia Martins Heltai, coordenadora da ginecologia e obstetrícia do Mario Degni. "Algumas pacientes de alto risco chegam aqui só na hora do parto. O correto seria que elas nos fossem encaminhada meses antes pela Unidade Básica de Saúde (UBS)".

Carmen conta que, às vezes, manda para a cesárea pacientes saudáveis que não aceitam ter parto normal. "Se aparece uma paciente que nunca me viu, não quer ser examinada na hora do parto e tem a cesárea como uma ideia fixa, eu a encaminho para a cirurgia", diz. "Do ponto de vista ético e moral, acho que precisamos orientá-la antes de fazer uma cesárea porque falta informação sobre os riscos".

Segundo Carmen, o bom de trabalhar no Programa Parto Seguro é poder voltar às origens. "Nós, médicos, somos formados para intervir. A minha geração é a geração do fórceps. A tendência é ir para cima da mulher com aquela agressividade de quem é formado para intervir. Está errado. Partejar exige  paciência".

A recém-nascida Maria Liz com os pais Edson e Joane. É a quarta vez que o casal tem um filho na mesma maternidade (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)

Foi com paciência que a equipe ajudou Joane Vicente de Souza a ser mãe pela quarta vez no mesmo hospital. Na semana passada, ela e o marido Edson Silva da Costa passeavam pelos corredores com Maria Liz. Para as estatísticas, mais um parto seguro. Para a família, uma história de respeito.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.