Você precisa descobrir a importância da transparência na saúde
Pagamos a conta da saúde pública e privada, mas estamos longe de ter acesso a informações detalhadas sobre a qualidade e o desempenho dos hospitais e de outros serviços. É lamentável que, em 2019, ainda não possamos comparar instituições e premiar as melhores com a nossa escolha.
Ainda assim, há iniciativas nessa direção. Uma delas é o projeto UTIs brasileiras, uma parceria da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) e da empresa Epimed Solutions. Dados de desempenho de metade dos leitos de UTI adulto do país são coletados e divulgados em um site (www.utisbrasileiras.com.br).
As unidades participantes têm acesso gratuito a um conjunto de dados para que possam se comparar a outras. O nome das instituições ainda não é revelado, mas o trabalho permite traçar um retrato das UTI's públicas e privadas do país. Em entrevista ao blog, o médico Ederlon Rezende, coordenador do projeto da AMIB, diz que a sociedade precisa descobrir a importância da transparência na saúde e começar a exigi-la. "Se a UTI esconde seus dados, é porque há algo errado", diz.
VivaBem: O que difere a medicina intensiva das outras especialidades?
Ederlon Rezende: A medicina intensiva não tem uma bala mágica. Não existe um medicamento ou um procedimento que mude o desfecho dos pacientes. Na cardiologia, a possibilidade de dissolver um coágulo que entope a veia do coração mudou o rumo da especialidade. Na neurocirurgia, poder fazer procedimentos endovasculares (sem a necessidade de abrir o cérebro) transformou a especialidade. Na reumatologia, os medicamentos imunobiológicos mudaram a vida de muitos pacientes. Na oncologia, houve um enorme avanço na escolha da quimioterapia, a partir da avaliação do perfil genético do paciente. Na medicina intensiva, os resultados dependem basicamente de organização e de trabalho em equipe.
VivaBem: Como é possível melhorar uma UTI?
Rezende: O fundamental é ter informação. Temos hoje dados de cerca de 14 mil leitos de UTI adulto. Isso representa cerca de 50% do total de leitos de UTI adulto do país. Algo muito representativo do total. A Holanda tem um registro como esse há mais de 20 anos. Lá há dados de todas as unidades. Só que a Holanda inteira tem 85 UTI's. No Brasil, metade das unidades são mais de 800. O nosso é o maior banco de dados epidemiológico de UTI's do mundo.
VivaBem: Esses dados representam a realidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e da rede privada?
Rezende: O Brasil tem cerca de 28 mil leitos de UTI adulto. Metade é do SUS e metade é da saúde suplementar. No nosso banco de dados, 2/3 são da saúde suplementar e 1/3 é do SUS. Temos esse viés. Não temos meio a meio, como gostaríamos de ter. Isso acontece porque os hospitais privados costumam ser mais organizados para coletar dados do que o sistema público.
VivaBem: É possível estimular as unidades do SUS a coletar dados?
Rezende: Recentemente, tivemos uma reunião com o ministro Luiz Henrique Mandetta e ressaltamos que é importante que haja uma motivação para que as UTI's do SUS se organizem melhor. A maneira como o SUS remunera as unidades não incentiva a eficiência. O SUS paga pelos dias em que o paciente passa dentro da UTI – e não por desfecho de saúde (os resultados obtidos com o tratamento). Se o Ministério da Saúde começasse a oferecer uma remuneração mais alta às UTI's preocupadas com qualidade, haveria uma mudança de cultura e uma melhoria significativa no atendimento. O ministro acenou de uma maneira positiva. Agora estamos trabalhando para estabelecer critérios capazes de indicar que uma UTI se preocupa com qualidade.
VivaBem: De que forma o paciente e os familiares podem participar dessa mudança de cultura e induzir novas práticas?
Rezende: Nada é mais importante para a sociedade em uma democracia do que a transparência. Ter os dados da minha UTI fazendo parte de uma rede e sendo publicados é importante do ponto de vista de cidadania. Ainda não chegamos a um cenário em que podemos identificar publicamente a UTI A, B ou C. Mas esse é um caminho sem volta. Na Inglaterra, por exemplo, onde o sistema público é forte, os resultados dos cirurgiões são divulgados. Você pode consultar o desempenho de cada profissional. Se a instituição tem a necessidade de esconder seus dados é porque há algo errado.
VivaBem: O que impede a AMIB de divulgar no site a informação completamente transparente a respeito do que foi coletado em cada instituição?
Rezende: Todas as unidades teriam de concordar em revelar seus dados publicamente. Para chegarmos a esse ponto, precisamos começar a criar a cultura da transparência. O primeiro passo já foi dado, mas a sociedade ainda não descobriu a importância disso.
VivaBem: Como é possível saber se uma UTI faz um bom trabalho?
Rezende: Há dois dados relevantes na demonstração da eficiência do sistema. Um deles é a taxa de mortalidade ajustada pela gravidade do paciente — ou TMP (taxa de mortalidade padronizada). Quando a taxa está acima de 1, significa que a mortalidade está acima do esperado para a gravidade do caso. Quando ela está abaixo de 1, significa que a mortalidade é inferior ao previsto. Comparamos um ano com outro para saber se a UTI está melhorando ou piorando.
VivaBem: O que mede o indicador TURP?
Rezende: TURP significa taxa de utilização de recursos padronizado. Enquanto o TMP avalia a eficiência no sentido de salvar vidas, a TURP revela a eficiência na utilização de recursos. Se o doente ficar mais tempo na UTI do que o esperado para a gravidade dele, certamente há um desperdício de recursos materiais e humanos. Se esse indicador estiver abaixo de 1, significa que a unidade utiliza menos recursos do que o previsto para a gravidade. Se ele ficar acima de 1, a instituição está usando mais recursos do que o previsto pela gravidade.
VivaBem: Com base nesses indicadores, qual é o retrato das UTI's brasileiras?
Rezende: Temos vários Brasis diferentes no mesmo país. A coisa é bem heterogênea. De uma maneira geral, as UTI's têm caminhado com uma alvissareira melhora nesses indicadores. Em 2013, essa mortalidade ajustada pela gravidade era de 1,19. Ou seja: morria-se 20% mais do que o previsto pela gravidade. Em 2018, esse número é 0,99. Os óbitos são compatíveis com a mortalidade prevista pela gravidade. É uma melhora importante, mas ela se refere ao conjunto das UTI's analisadas.
VivaBem: No SUS, a realidade é outra?
Rezende: A curva das UTI's privadas é de melhoria contínua. As do SUS vinham melhorando até 2017. Em 2018, pioraram.
VivaBem: Por quê?
Rezende: Vários fatores podem ter contribuído para essa queda no desempenho, mas nos últimos anos houve uma redução de investimento na saúde pública. Quando ocorre alguma coisa assim, as UTI's sentem. A TURP, que mede a utilização de recursos, piorou também.
VivaBem: Que tipo de atitude as famílias devem ter para contribuir para a melhoria?
Rezende: A conversa com a equipe é bem-vinda. Os familiares devem perguntar se naquela unidade (pública ou privada) há coleta de dados de desempenho. É importante, também, entender que UTI é um lugar para lutar pela vida e não um lugar para lutar contra a morte. As pessoas que têm uma condição terminal, uma doença incurável, não se beneficiam com a ida para a UTI. Precisamos utilizar esse recurso caro e importante para quem efetivamente vai ter benefício. Se não houver mudança de comportamento, o sistema não aguenta os custos.
VivaBem: Há uma mudança de postura dos hospitais a partir do momento em que eles recebem seus dados?
Rezende: Invariavelmente. Não há motor melhor para estimular a melhoria do que a informação. Poder olhar os dados da minha UTI e comparar com outras é motivador. A coleta de dados gera mudança. Se não houver comparação, ficamos todos achando que fazemos um bom trabalho. É possível produzir mudanças mesmo nos hospitais públicos, submetidos à contenção de recursos. Muitas das iniciativas de melhoria estão associadas a mudanças de comportamento, mais do que investimento. Para prevenir infecção dentro de uma UTI, a atitude mais importante é lavar as mãos. Isso não custa.
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