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Cristiane Segatto

Caímos na conversa de quem lucra com a doença; e pagamos a conta

Cristiane Segatto

08/05/2019 04h00

Crédito: iStock

Nas últimas duas semanas, o confronto entre duas das maiores empresas do setor de saúde virou notícia. O United Health Group, multinacional controladora da Amil, anunciou que descredenciará uma série de hospitais a partir de junho. Entre eles, unidades da Rede D'Or São Luiz, o maior grupo hospitalar privado do país.

A discórdia envolve a tentativa de adoção de novos modelos de remuneração dos hospitais. Em entrevista à jornalista Claudia Collucci, da Folha, o médico Claudio Lottenberg, presidente do UnitedHealth Group, afirmou que os beneficiários da operadora continuarão a ter "acesso a uma rede de hospitais que praticam medicina baseada em evidência com foco nos melhores resultados de saúde".

Ao final da conversa, Lottenberg lançou a pergunta: "Você quer um hospital bonito ou um hospital que lhe dê segurança?"

Como paciente, não tenho dúvidas. Embora nada impeça que um hospital seja bonito e seguro ao mesmo tempo, prefiro a segurança se tiver que escolher entre um desses dois atributos. Falta de segurança mata. Beleza conforta, mas é possível sair viva de um hospital sem ter visto nenhum sinal dela.

Minha escolha está feita, mas é hipotética. Desde quando paciente tem acesso a elementos objetivos para fazer escolhas sensatas no mercado de saúde brasileiro –um terreno onde as disputas se multiplicam e a falta de transparência é uma marca?

É, meu caro leitor. Ao longo da minha carreira de jornalista especializada em saúde ouvi, inúmeras vezes, colegas e leitores que me pediam a indicação de um bom hospital. Uma missão impossível diante da absoluta falta de acesso a indicadores que permitam qualquer comparação minimamente embasada.

Como podemos saber que o hospital A é melhor que o B? Por que tem poltronas de couro macio, piso de mármore por todos os lados e um vaivém de celebridades? Isso não tem nada a ver com saúde.

A maioria dos beneficiários das operadoras segue escolhendo serviços de saúde de forma quase aleatória. Folheia o livrinho do convênio, clica em algumas abas do aplicativo ou, simplesmente, confia na indicação de alguém. É uma atitude arriscada.

Arriscada, mas compreensível. Só os muitos interessados em encontrar alguma informação sobre os prestadores de serviço terão paciência suficiente para se perder no site da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Fiz isso recentemente. Abri as planilhas e cartilhas do Programa de Qualificação dos Prestadores de Serviços na Saúde Suplementar (Qualiss), uma iniciativa da ANS criada há três anos com o objetivo de ampliar o poder de avaliação e de escolha por parte dos beneficiários de planos de saúde.

A ideia é boa, mas está longe de se transformar em informação simples, clara e acessível. O interessado não encontra ali nenhuma ferramenta de comparação de indicadores de segurança e qualidade (índice de infecção hospitalar, taxa de readmissão após uma internação etc) que possa ajudá-lo a escolher entre dois ou mais prestadores.

Não há, portanto, nenhuma possibilidade de saber se um hospital faz bem ou mal à saúde de quem passa por ele. Três meses após uma cirurgia de quadril, por exemplo, os pacientes estão melhor, pior ou do mesmo jeito que estavam antes do procedimento?

Avaliações desse tipo precisam ser feitas e divulgadas. Só assim a sociedade poderá saber se está comprando saúde ou belezura. E, ao mesmo tempo, ajudar a reduzir os desperdícios que não melhoram a vida de quem financia o sistema — todos nós.

Por meio de auditorias de contas médicas, as maiores operadoras são capazes de apontar, por exemplo, quais são as instituições que enviam mais pacientes à UTI, mesmo nos casos em que esse encaminhamento é questionável.

Até quando essas informações seguirão sob sigilo? Sem acesso a dados objetivos para comparar profissionais e serviços de saúde, o paciente não consegue fazer valer o seu poder de consumidor. É incapaz de premiar, com a sua escolha, os serviços que, efetivamente, melhoram a saúde.

Desorientados, seguimos caindo na conversa de quem lucra com a doença. E, ao final de tudo, pagamos a conta.

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.