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Cristiane Segatto

A aula de smartphone para idosos que escolheram viver bem

Cristiane Segatto

24/04/2019 04h00

A professora Larissa e algumas das alunas inscritas no curso de smartphone do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo (Foto: Cristiane Segatto/ UOL VivaBem)

Com tanta informação nova e fascinante para absorver em apenas uma hora, Maria Yoshi, 72 anos, tratou de unir o melhor da tecnologia ao conforto da tradição. Na mão esquerda, o celular. Na direita, um toquinho de lápis com uma providencial borracha na ponta. Sobre a mesa, a pequena caderneta. Professora aposentada, Maria quer aprender.

No curso de smartphone para idosos, oferecido pelo Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE), em São Paulo, quem ensina é a estudante de marketing Larissa Bispo dos Santos. Quando ela nasceu, há 26 anos, o mundo já era digital. Mover-se nele, incorporando novidades a cada dia, é, para a geração de Larissa, intuitivo como brincadeira de criança.

"Adoro as idosas e, de certa forma, de brincar com elas", diz. O trabalho de Larissa é sério, mas, no fundo, é também uma grande brincadeira. Para o grupo de 12 alunas inscritas, é um momento de se permitir grandes navegações guiadas com paciência.

WhatsApp descomplicado

Na véspera do feriadão de Páscoa, a aula era sobre os recursos do WhatsApp. Larissa ensinava como adicionar colegas ao grupo criado na rede social. Aproximou-se da cabeleireira Rena Yamaguchi, 77 anos, e, apontando para o celular, explicou:

— Aqui você precisa adicionar a Janete, a Marília e a Dirce.

— Ah, bom. Entendi.

Rena disse que entendeu, mas seus dedos titubearam sobre a tela. Ao perceber da dificuldade da colega ao lado, Maria agiu como a professora que foi um dia.

— Isso, Rena! Está certo. Agora tenta de novo, sem ninguém falar nada.

Vocações não se aposentam.

Para não ficar para trás

O curso foi criado por Suely Maia, 64 anos, ao observar as dificuldades dos colegas no manuseio de smartphones. Ela reparou uma apostila com conteúdo sobre recursos práticos (alarme para tomar remédios na hora certa, localização na cidade, escolha do melhor meio de transporte etc).

Na ausência de Suely, quem assume as aulas é a jovem Larissa. Naquela tarde de quinta, ela ensinava como compartilhar a localização, em tempo real, com a família ou com o grupo. Um recurso capaz de aumentar a sensação de segurança dos idosos em seus deslocamentos pela cidade.

Encantada com a lição, a professora aposentada Maria das Graças Carvalho Rodrigues, 70 anos, se esforçava para dosar a força com que pressionava a tela.

— Minha mão é pesada. Vou treinar os dedos como lição de casa. Viu, Larissa, como é difícil trabalhar com velho? A gente se acomodou, surgiram muitas coisas novas e ficamos para trás.

Nada que ela não possa aprender até agosto, quando termina o curso de oito meses.

Larissa ensina a professora aposentada Maria Yoshi, 72 anos, e a cabeleireira Rena Yamaguchi, 77 anos, a usar os recursos do WhatsApp (Foto: Cristiane Segatto/ UOL VivaBem)

Para não criar doença

Sem estímulos novos, diminui a capacidade natural que o cérebro tem de criar conexões alternativas entre os neurônios. "Muitos dos problemas de memória que as pessoas de idade apresentam decorrem da falta de elaboração de objetivos a serem atingidos. É fundamental ter planos e se engajar em atividades que elas achem interessantes", diz o médico Mauricio Ventura, diretor técnico do serviço de geriatria do HSPE.

Quem tem um projeto e consegue se sentir satisfeito com os seus planos vive melhor, afirma Ventura. "A gente não pode pensar no físico desconectado da mente. É mente sana em corpo são", diz.

Problemas de saúde são inerentes ao envelhecimento. O que muda é a forma como cada pessoa lida com eles. "É muito mais fácil controlar o diabetes em um paciente que convive com outras pessoas e se engaja em atividades do que em alguém sem vontade de nada".

Apesar da tosse, dos espirros, dos narizinhos vermelhos e dos desafios impostos pela velhice, as meninas da aula de smartphone escolheram viver bem.

Xô, isolamento social

Em 2050, quase 30% dos brasileiros terão mais de 60 anos. Principalmente nas grandes cidades, como São Paulo, o isolamento social compromete o envelhecimento ativo e a qualidade de vida.

É preciso tirar os idosos de casa, conectá-los com o mundo e cultivar laços afetivos. A tecnologia não resolve tudo, mas pode facilitar encontros.

Enquanto Larissa explicava à turma como mudar o status pessoal no WhatsApp, a escriturária aposentada Janete Graciano da Silva, 70 anos, aprendeu a trocar a foto do perfil. Escolheu uma em que ela aparece com o neto. E, claro, quis logo dar a notícia de seu progresso ao rapaz. Falando baixinho, com a voz melodiosa, gravou um áudio:

— Oi, amor da vovó. Você gostou da minha nova foto? Um beijo, boa tarde e bom serviço.

Alguns minutos depois, feliz como ela só, anunciou às colegas:

— Ele já respondeu! Mandou um coração verde, esse danadinho. Só porque sou corinthiana…

Assim que a aula acabou, algumas das alunas saíram apressadas para outras atividades oferecidas pelo Centro Integralidade do HSPE, um espaço de 5,5 mil m² dedicados ao envelhecimento ativo. Para participar de oficinas de teatro, bijuteria, macramê (um tipo de tecelagem manual), entre outras, é preciso fazer também 150 minutos de atividade física por semana.

Os idosos (servidores públicos estaduais, dependentes e agregados) contam com estúdio de Pilates, piscina para hidroterapia e um ambulatório de reabilitação destinado a melhorar a força muscular e diminuir as dores por meio de jogos virtuais.

Nem todos gostam de tecnologia, línguas ou música, mas sempre pode haver um interesse escondido e pronto para ser resgatado. A palavra-chave, o ingrediente que muda tudo, é o prazer. Encontre o seu e se alimente dele. Hoje e sempre.

 

 

 

Sobre a autora

Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. Em 2012, com a reportagem “O paciente de R$ 800 mil” e, em 2014, com o trabalho investigativo “O lado oculto das contas de hospital”, ambos publicados na Revista Época. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez. Participa de projetos liderados por organizações e pessoas que acreditam no valor da informação precisa e das histórias bem contadas.

Sobre o blog

Desde que o mundo é mundo, temos a necessidade de ouvir, contar e compartilhar histórias. A missão deste blog é garimpar pequenas pérolas, histórias miúdas (mas nunca banais) no rico universo da saúde. Grandes dilemas cotidianos, casos surpreendentes de cooperação, aceitação (ou superação) de limites, exemplos de solidariedade, pequenos oásis de sanidade em meio ao caos. Este espaço abrigará as boas notícias, que comovem ou inspiram, mas não só elas. Teremos olhos e ouvidos para capturar e analisar as coisas que não vão bem. Tentaremos, sempre, transformar confusão em clareza. Nada disso faz sentido sem você, leitor. Alguma sugestão de história ou abordagem? Envie pela caixa de comentários ou por email (segatto.jornalismo@gmail.com) e dê vida a esse blog.